O PCC (Primeiro Comando da Capital) parece
estar no centro das duas grandes rebeliões que aconteceram na última semana no
Brasil. No Amazonas, 60 presos supostamente ligados à facção morreram após um
motim no Complexo Penitenciário Anísio Jobim próximo a Manaus. Eles teriam sido
assassinados por membros da rival Família do Norte.
Na sexta-feira, o conflito aconteceu em Roraima, onde 33 homens foram
encontrados mortos na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, na zona rural de
Boa Vista. O PCC estaria envolvido.
Quem pensa na possibilidade de
revide, talvez imagine os chefões do Comando ordenando a vingança. Mas a
antropóloga Karina Biondi, autora de Junto e Misturado: uma
etnografia do PCC, diz que não é bem assim.
Pesquisadora do tema há 14 anos, Biondi afirma que o PCC é mais uma
ideia ou uma metodologia de vida do que uma estrutura organizada. Essas
características fluidas permitiram que a ética da facção se espalhasse para
outros Estados sem a necessidade de ordens superiores.
Prova disso, diz a antropóloga, é que as rebeliões aconteceram mesmo com
o isolamento, em São Paulo, dos supostos líderes do PCC. Ela acredita que
membros paulistanos tenham levado os ideais do grupo - de união dos presos
contra o sistema penitenciário - para as cadeias do Norte.
"Para ter
chegado lá, alguém deve ter levado a ideia e fez ela se propagar. Essa
propagação depende da capacidade de oratória, de persuasão, pré-requisitos para
que uma pessoa seja convidada a integrar o PCC."
Leia
abaixo os principais trechos da entrevista:
BBC
Brasil - Em seu livro, você diz que a presença do PCC não depende da presença
de seus membros ou de líderes. O que você acha que aconteceu em Amazonas e
Roraima?
Karina
Biondi - Antes de tudo, o PCC é
mais uma ideia do que uma estrutura montada. Por constituir mais a ideia de uma
forma de se proteger, uma metodologia de vida, ele consegue acontecer sem que
necessariamente esteja vinculado a pessoas.
Mas,
é inevitável que, para que essa ideia seja propagada, alguém tem que levá-la.
Acho que seria o caso de ter membros mesmo do PCC nesses lugares, mas é uma
suposição.
BBC
Brasil - As pessoas imaginam que o PCC é uma facção com estrutura bem definida.
Você pode explicar como ele se organiza?
Biondi
- Essa interpretação (do PCC como organização
hierarquizada) tem a ver com a forma como estamos acostumados a pensar o mundo.
Conhecemos uma estrutura estatal e tentamos transplantá-la para o que estamos
vendo.
Meu
esforço (na pesquisa) foi tentar não aplicar esses modelos mentais no que eles
fazem. Se fosse uma estrutura hierárquica, piramidal, que dependesse da
existência de líderes para acontecer, a atuação do governo paulista de isolar
ou transferir líderes teria acabado com o PCC.
Na
minha pesquisa, havia situações nas quais o PCC acontecia mesmo quando não
tinha nenhum membro da facção presente. Isso ocorre, por exemplo, nas Febems,
onde não existem membros do PCC porque (a facção) não batiza menores de idade.
Aconteceu
também numa cadeia onde fiz pesquisa. Ela era do PCC, orientada de acordo com a
ética do PCC, mas não tinha membros ali.
O
PCC é, antes de qualquer coisa, uma ideia ou, como eles chamam, um movimento.
Não tem um limite definido, e pode se prolongar indefinidamente.
§
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BBC Brasil - No que a ética do
PCC consiste?
Biondi
- O principal pilar dessa
ética é que os ladrões - como eles chamam toda pessoa que transita pelo mundo
criminal -, que no caso são os presos, têm que se unir, e não guerrear uns com
os outros, para que consigam enfrentar o inimigo comum: o sistema carcerário.
Este é um dos pilares do PCC: a paz entre os presos e a guerra contra o sistema
policial e carcerário.
Outra
coisa que se tornou pilar é a igualdade.
BBC
Brasil - Você diz que não é necessário haver um membro do PCC para garantir a
presença da facção. O que te faz supor que haveria membros nas cadeias de
Amazonas e Roraima?
Biondi
- Para ter chegado em Manaus, acho que
dependeu da existência de algum membro.
Alguém
deve ter levado a ideia e feito ela se propagar. Essa propagação depende da
capacidade de oratória, de persuasão, pré-requisitos para quem uma pessoa seja
convidada a integrar o PCC.
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Mendes sobre crise penitenciária
BBC Brasil - Existe um convite
formal?
Biondi
- Sim, existe um batismo, ele assumem um
compromisso. Mas não quer dizer que todas as pessoas que morreram (na rebelião)
fossem membros do PCC.
Um
membro não necessariamente conhece o outro. Eles não ostentam ser ou não
membros.
BBC
Brasil - Com toda essa discrição, como acontece a comunicação e o envio de
recados?
Biondi
- A comunicação não é infalível e nem sempre chega em todos os lugares ou
da mesma forma. Alguns pesquisadores dizem que o lema do PCC mudou. Teriam
adicionado a palavra "união". Fui para a pesquisa de campo e escutei
isso. Mudei de bairro e as pessoas nunca tinham ouvido falar.
No início, o lema era "Paz, Justiça e
Liberdade", o mesmo do Comando Vermelho. Depois, incluíram
"Igualdade" - foi quando um monte de coisas mudaram no funcionamento
do PCC, com uma obsessão pela igualdade. Recentemente, houve a inclusão da
"União". Mas até quando fiz a pesquisa nas ruas não era em todo lugar
que tinha chegado.
Chegava num bairro, e os moradores não sabiam quem
era membro e quem não era. Não é uma coisa tão evidente, como no Rio de
Janeiro, onde o dono do morro anda ostentando, com uma equipe de segurança. Em
São Paulo, é tudo muito discreto.
Fico imaginando que, se isso foi replicado no
contexto de Manaus, as pessoas que mataram (na rebelião) poderiam não saber de
fato se os outros eram ou não membros do PCC.
BBC Brasil - As característica de
discrição e fácil difusão são específicas do PCC ou são comuns a outras
facções?
Biondi - Pelo
o que leio de pesquisas do Rio, (as facções) são bem diferentes em termos de
visibilidade e hierarquia. Toda essa forma disforme do PCC é consequência da
obsessão pela igualdade. Não é porque sou membro do PCC que tenho mais direitos
do que os outros presos.
Tudo vai tornando o PCC disforme: não saber exatamente quem é membro, a
pessoa não ostentar, porque ela não pode mandar. Se mandar, vai estar ferindo
um dos princípios do lema do PCC. Uma relação de mando vai contra a igualdade e
é passível de expulsão.
BBC Brasil - Não existem ordens de um
hierarquia superior?
Biondi - Eles
não chamam de 'ordens', chamam de 'salves'. Quando uma orientação tem um
caráter mais incisivo, ela vem em nome do PCC e não de pessoas específicas. O
PCC está acima. Aí sim aparece uma relação de desigualdade.
Alguém comete um
erro. Eles não falam em 'julgamento', nem em 'punição', que são coisas do
sistema. Eles falam em 'consequências'. E como a pessoa vai ser cobrada pelo
erro? A cobrança não vem de atores individuais, vem do PCC. Ainda que sejam
atores que apliquem a punição. É um método para que você resguarde uma certa
ideia de igualdade.
Ela
(a consequência) necessariamente tem que ser anônima.
§
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atribui massacre ao PCC
BBC Brasil - Na madrugada de
sexta, houve a rebelião em Roraima, com 33 mortos, e governo do Estado falou em
envolvimento do PCC. A vingança faz parte do modus operandi da facção?
Biondi
- Em certos casos, sim. Já fiquei sabendo de
ocasiões em que até a igualdade é requisitada para justificar vida que se paga
com vida. Aí eles decretam a morte de pessoas com base na igualdade. É
possível.
BBC
Brasil - No livro, você conta como PCC saiu vitorioso em São Paulo depois de
várias brigas entre facções nos anos 1990. Estamos vendo uma volta desses
conflitos?
Biondi
- Em São Paulo, não. O PCC
ainda é hegemônico e não temos notícias de guerra. Sempre aparecem pontos de
oposição, mas são muitas cadeias em São Paulo, com 200 mil presos. É a maior
população carcerária do país, e mais de 90% são alinhados ao PCC, com base no
que dizem presos e agentes carcerários. Não se acaba com esse tipo de hegemonia
de uma hora para outra.
Em
outros Estados, isso está em jogo ainda. É a frente expansiva e expansão não se
dá sem morte. De um lado ou de outro.
BBC
Brasil - O PCC tem a expansão como um de seus objetivos?
Biondi
- Sinceramente, não sei.
As
pessoas que são do crime são a despeito do PCC existir. É ilusório pensar que
uma pessoa trafica drogas por causa do PCC. Mas para esse negócios, sejam
assaltos, tráfico ou outra atividade criminosa, já há um bom tempo (as pessoas)
saem de São Paulo. E às vezes são presos fora (do Estado).
Imagino
que, na hora que se é preso em outras cadeias, leva-se a ideia. É um dos
fatores de expansão e mesmo de aliança, de tornar as coisas mais fáceis para
práticas criminais. Mas não sei se existe um propósito comum.
BBC
Brasil - Você começou a pesquisar o PCC em 2003. Percebe mudanças da facção
nesse período?
Biondi
- Algo apareceu
recentemente, quando voltei a estudar cadeias: os demais presos, não membros do
PCC, reclamam que a cadeia está largada, que a quebrada está largada, que o PCC
está fraco. A ideia seria de conivência. Vejo que cada vez menos a resolução de
conflitos se dá de forma violenta. Eles têm se tornado mais tolerantes,
digamos. E isso tem muito a ver com a Lei de Drogas, que agora tem dez anos.
Depois
da lei, não se encarcera usuários, mas os usuários passaram a ser presos como
traficantes. Então, as cadeias de São Paulo estão lotadas de usuários e eles
não são necessariamente do crime, não têm essa ética do crime. A forma de lidar
com isso foi tornar-se mais tolerante e conscientizar essas pessoas em vez de
cobrar.
Nessa
lógica, os usuários ficam dando mancada toda hora e os outros presos ficam
nervosos, dizendo que o PCC está frouxo.
BBC
Brasil - Conscientizar de que forma?
Biondi
- É conversar, explicar. Dizer: "se você
fizer isso, está desrespeitando o companheiro". Aí o cara comete outro
erro, e o PCC conversa de novo.
Imagino
que seja uma decisão política. Porque se fossem expulsar todas as pessoas que
cometem erros dessa natureza, de convívio, a oposição já estaria maior do que o
PCC. É uma estratégia para manter a hegemonia e trazer as pessoas para o lado
do PCC e não torná-las inimigas. Agência Brasil //