A prisão brasileira é
"uma coisa muito louca", descreve a antropóloga e pesquisadora em
violência Alba Zaluar. Ela explica: ao mesmo tempo que enjaula e oferece
condições degradantes, o sistema carcerário do país permite armas, drogas e até
a produção de bebidas alcoólicas - às vezes vendidas nas cantinas das unidades.
"As prisões
brasileiras não têm nada a ver com essa visão foucaultiana, da disciplinarização,
da possibilidade de vigiar tudo. Aqui no Rio, presos constroem as próprias
celas, e a cantina vende de tudo: fogãozinho, gelo para colocar no isopor. O
pessoal cozinha nas celas."
Uma das primeiras a
estudar a infiltração do narcotráfico nas comunidades pobres do Rio, Zaluar diz
que a conivência com a entrada de maconha e outras substâncias que alteram o
estado de consciência são formas de aliviar a tensão desses lugares
"explosivos", onde rebeliões como a do Complexo Penitenciário Anísio
Jobim (Compaj), próximo a Manaus, são "mais do que esperadas".
Durante mais de 17 horas de motim, 56 presos morreram.
A fórmula que cria o
conflito, conta a antropóloga à BBC Brasil, é clara: superpopulação, rivalidade
entre facções, circunstâncias desumanas e um sentimento generalizado de
injustiça.
Leia abaixo os
principais trechos da entrevista.
BBC
Brasil: Que elementos estavam presentes no complexo penitenciário próximo a
Manaus para que explodisse uma rebelião? Um motim desse tamanho era esperado?
Alba
Zaluar: Convenhamos, é mais do
que esperado, porque um presídio que tem vagas para 400 pessoas ter mais de
1.200 já é um problema. E a pólvora é exatamente esta: você tem presos demais,
inclusive muitos que não têm sentença ainda. É uma superpopulação carcerária de
homens que não se sentem culpados de nenhum crime que justifique a perda da
liberdade dessa maneira. Eles não consideram que traficar drogas seja um crime
grave. Muitos se consideram apenas comerciantes. No caso de estupro ou dos
homicidas é diferente, inclusive eles punem os estupradores dentro da prisão.
Além disso, o
relacionamento entre os homens é complicado, justamente porque a rivalidade
tende a explodir caso não haja uma socialização para resolver os conflitos pela
palavra. As pessoas que não conseguem fazer isso explodem. E se tiverem alguma
arma, vão usá-la. Eles receberam armas pelo buraco (no muro do presídio), mas
fabricaram outras. Estão sempre fabricando armas, e as armas estão sempre
entrando na prisão.
As prisões brasileiras
não têm nada a ver com essa visão foucaultiana, da disciplinarização, da
possibilidade de vigiar tudo. Aqui no Rio, presos constroem as próprias celas,
e a cantina vende de tudo: fogãozinho, gelo para colocar no isopor. Os presos
cozinham nas celas.
Resumindo, a situação é
absolutamente explosiva. Você não tem um controle disciplinar, mas um amontoado
de homens que não foram socializados para resolver seus conflitos pela palavra.
E você bota todos aglomerados dentro de espaços de reclusão, nos quais eles não
podem espairecer.
BBC
Brasil: Ao mesmo tempo em que parecem muito restritivas, as prisões brasileiras
também têm um comércio paralelo de drogas, armas e bebidas. Isso não é
contraditório?
Alba
Zaluar: Por que você acha que os
carcereiros fecham os olhos em relação à entrada de drogas que alteram o Estado
da mente, principalmente a maconha? Porque a maconha acalma.
Tem mais: (os presos)
fabricam bebida alcóolica dentro da prisão. E vende bebida na cantina. A prisão
brasileira é uma coisa muito louca, porque ao mesmo tempo em que é extremamente
repressiva, de entulhar um monte de gente sem condições de higiene, com ratos e
baratas, você tem todas essa liberalidade de fazer comida, bebida, fumar
maconha, ter armas.
BBC
Brasil: A rebelião em Manaus foi gerada pelo conflito entre duas facções
rivais. Onde estão as origens desses grupos e como se tornaram tão fortes?
Alba
Zaluar: Há alguns estudos (sobre
o assunto), feitos principalmente no Rio de Janeiro, porque aqui estavam as
grandes prisões, com presos políticos do Brasil todo e também presos comuns.
Isso na década de 1970, durante o regime militar. Os presos políticos, quando
chegaram em presídios grandes, como o de Ilha Grande, se organizaram.
Os presos comuns viram
isso e se interessaram. Houve uma interação entre os presos políticos e os
presos comuns, e os últimos aprenderam a se organizar.
Durante os anos 1970
havia duas falanges, como as facções eram chamadas então: Jacaré e Vermelha. A
falange Jacaré era extremamente violenta, cobrava pedágio, intimidava os
prisioneiros mais fracos. Havia uma forma de concretizar o poder na prisão que
era extremamente violenta e injusta do ponto de vista do prisioneiro.
Inventaram então uma
organização, seguindo os princípios que aprenderam com os presos políticos,
para se proteger dentro da prisão, proibindo o estupro de prisioneiros, o
pedágio. A facção começa com o sentido de proteger o prisioneiro.
Isso foi criando o
esquema de lealdade e também de conexão via negócios. Durante os anos 1970, (as
facções) estavam principalmente envolvidas com roubos e assaltos a banco, mas
no final da década perceberam que o tráfico de drogas dava muito mais dinheiro
e era menos perigoso.
Em
meados dos anos 1980, elas já dominavam o tráfico. Foram conquistando os vários
traficantes, que antes eram freelancers, e passaram a ter essa ligação por conta da
proteção.
Esses interesses
comerciais, somados ao interesse em ter proteção na prisão, fez com que as
facções crescessem. Mas sempre tem briga. Aqui no Rio temos o Comando Vermelho,
o Amigo dos Amigos (ADA), o Terceiro Comando e agora o PCC, que está atrelado à
ADA, de modo que sempre houve muito conflito fora da prisão. Dentro dela,
evitam-se as brigas separando os presos por facções, o que parece não ter
ocorrido em Manaus, como não ocorreu no Maranhão, em Pedrinhas.
BBC
Brasil: O secretário de segurança do Amazonas falou que esse foi mais um
"capítulo da guerra silenciosa e impiedosa do narcotráfico". Mas na
composição das nossas prisões há uma grande parcela de pequenos traficantes, e
poucos grandes líderes do tráfico.
Alba
Zaluar: A gente tem vários
desses pequenos traficantes. Nunca mataram ninguém, sabe? Nunca roubaram.
Estavam desempregados, começam a vender uma coisa ali, ganham um dinheirinho e
ficam vendendo. Aí passam anos na prisão, veem um monte de coisa, inclusive
rebeliões, gente sendo morta e têm um profundo sentimento de injustiça, porque
acham que não merecem passar por tudo isso.
BBC
Brasil: Além do narcotráfico em si, o problema não estaria também na forma como
o Estado lida com ele, na Justiça e no sistema carcerário?
Alba
Zaluar: Exatamente. É como o
Estado lida com isso. Até na proposta da guerra contra as drogas, que faz com
que qualquer um que more em favela, tenha um caderninho de nota com os nomes
das pessoas para as quais vende e pratique essa atividade comercial, caia na
categoria de traficante, sendo que tráfico é um crime hediondo, que permite
penas muito altas.
É claro que isso
aumentou enormemente a população carcerária. É muito alto o percentual de
presos por conta das atividades relacionadas ao tráfico. Além disso, acontecem
muitos homicídios por causa dessas guerras de facções e eles não são
investigados, porque não há como provar nada, não tem testemunha. Esses crimes
ficam sem solução.
A repressão do Estado
faz com que a droga seja muito valiosa e essa atividade comercial esteja cheia
de riscos, então para se proteger eles têm que se armar, se organizar e o
resultado é este.
BBC
Brasil: Nesta rebelião no Amazonas, assim como em outras, o número e a crueldade
das mortes chocaram. Por que vemos assassinatos tão bárbaros entre presos?
Alba
Zaluar: É uma coisa que tem a
ver com a guerra, se chama sociologia do ethos guerreiro.
Na guerra você mata ou você morre. E, além disso, você tem que mostrar para seu
inimigo que está muito forte. Para fazer isso, tem que se armar muito, ter
muitos soldados. E também fazer essas demonstrações (de força).
Quanto mais cruel você
é, mais medo provoca no inimigo. Assim como tem uma corrida armamentista, há
uma corrida de crueldade. Eles vão se tornando cada vez mais cruéis para dar
cada vez mais medo no rival.
BBC
Brasil: Como lidar com rebeliões como esta e o que fazer para evitá-las?
Alba
Zaluar: Em primeiro lugar, você
não pode jogar um bando de homens dessa maneira dentro de prisões e esquecê-los
lá, deixar que se virem, que resolvam os problemas de comida, da cela, as
tensões lá dentro. A prisão é um lugar extremamente tenso. Precisa ter alguma
coisa que demonstre que há saídas. A saída para o preso seria adquirir uma profissão,
se educar mais, continuar a trabalhar.
Vários desses que estão
nas prisões são trabalhadores, já tinham atividades laborais antes, eram
desempregados, mas sabiam fazer coisas. Você tem que dar essa possibilidade,
demonstrando que é possível sair. Penas imensas, anos e anos na prisão, não
facilitam em nada a vida deles.
Além do mais, a própria
maneira de julgar tem que ser aprimorada, porque muitos desses presos se sentem
extremamente injustiçados, e isso não é bom para a cabeça deles nem para quem está
como eles na prisão.
Existem sistemas de pena
alternativa e algo que se chama justiça restaurativa. É aquela que faz com que
a vítima ou seus parentes e o perpetrador da ação criminosa se encontrem para
que um saiba o mal que causou ao outro. Especialmente para que quem fez o mal
entenda o que provocou, se arrependa e demonstre que compreende os efeitos de
suas ações. BBC Brasil //