Desde o início do mês de novembro, a capital da Bolívia, La Paz, enfrenta
uma grave falta d'água - o desabastecimento e o racionamento afetam diretamente
mais de 100 bairros e cerca de 340 mil pessoas, segundo o jornal americano
"The New York Times".
É a pior crise em 25 anos, que agora
chegou também à vizinha cidade de El Alto. Nas principais represas que
abastecem a capital, os volumes de água são menores que 10%.
Foi a pedido exatamente da Bolívia
que, em julho de 2010, as Nações Unidas reconheceram o acesso à água como
direito humano básico.
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manutenção das fontes de água, energia e alimentos?
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A BBC Mundo, serviço em espanhol da
BBC, acompanhou a rotina das pessoas afetadas pelo problema.
Numa sexta-feira, às 5h, a temperatura
em La Paz não chega a três graus. Antes do nascer do sol, Marco lava o rosto
com a água de uma jarra e um balde, aquecida com um dispositivo elétrico
portátil.
Ele não tem tempo de fazer a barba
porque precisa chegar cedo à casa da mãe e ajudá-la a carregar pesados baldes
cheios do produto mais procurado há um mês em La Paz.
Grande parte da cidade está há mais de
um mês vivendo com um dramático racionamento de água potável. Ou seja: casos
como o de Marco e sua mãe se repetem em milhares de casas.
Construída entre 3,3 mil e 4,1 mil
metros acima do nível do mar, La Paz é a capital mais alta do mundo. Entre os
mais de cem bairros atingidos, estão os maiores da cidade.
No começo, o corte da água foi
parcial, mas se tornou mais e mais drástico à medida que os dias foram passando.
Há bairros em que as torneiras
praticamente se tornaram um enfeite.
"E sabe o que é pior?", diz
Marco, um engenheiro de 32 anos. "O mais terrível é que estamos nos
acostumando."
Uma das particularidades da crise da
água na capital da Bolívia é que os bairros onde tradicionalmente vivem as
pessoas com mais recursos também são os mais castigados pelo racionamento.
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transmite tantas doenças?
Isso porque as represas que
forneciam água potável a essas áreas foram as que tiveram a vazão reduzida mais
drasticamente pela pior seca enfrentada pela Bolívia em três décadas.
Calacoto, na zona sul, é um
bairro cheio de hotéis, residências diplomáticas, embaixadas, restaurantes
sofisticados e shoppings.
Em uma análise simples, a
impressão é de que a vida segue normalmente nas suas ruas com casas modernas e
prédios altos.
Mas basta entrar em um
restaurante para sentir o impacto da crise.
"Antes de sair de casa para
almoçar em algum restaurante, lavo as mãos com a água que recebo do
caminhão-pipa", diz Daniela, que mora em um bairro vizinho a Calacoto e
trabalha em uma loja de material esportivo.
O motivo: em alguns dos
estabelecimentos gastronômicos mais exclusivos e caros da cidade, os banheiros
estão fechados.
Outros disfarçam o racionamento
deixando tigelas ou vasilhas finas de porcelana ou cristal com água suficiente
para apenas uma pessoa lavar as mãos.
Embora não digam abertamente,
representantes diplomáticos e funcionários de agências de cooperação
internacional confirmaram à BBC Mundo que começam a deixar La Paz com suas
famílias.
Alguns, por exemplo, mandaram os
filhos de volta à Europa para passar as festas de fim de ano com os avós.
Outros anteciparam as férias para
voltar aos países de origem durante a crise hídrica.
A grande maioria das residências
diplomáticas de La Paz fica nos bairros castigados pelo racionamento.
A crise da água em La Paz se deve à
pior seca enfrentada pela Bolívia nas últimas décadas, causada pelo fenômeno El
Niño - que aquece as águas do Oceano Pacífico - e pela mudança climática.
Especialistas no assunto, como Dirk
Hoffmann, disseram à BBC Mundo que a Bolívia não tomou as medidas necessárias
para enfrentar a falta 'água, embora ela tivesse sido "anunciada desde
2009".
"Durante quase 20 anos não se fez
nada para construir novas redes de abastecimento, enquanto nesse mesmo período
a população dobrou", disse ele.
Outros motivos destacados são a má
gestão pelas autoridades e os megaprojetos mineiros que, além de deixarem em
todo o país os rios e margens contaminadas, utilizam milhões de litros de água
por dia sem compensação alguma.
O governo boliviano anunciou novos pontos
de captação de água para La Paz desde o início da crise.
Vizinhos organizam grupos de WhatsApp
para alertar uns aos outros quando um caminhão-pipa se aproxima do bairro.
Não importa o horário: quando um dos
veículos - escoltados por militares - chega, as filas se formam imediatamente.
Baldes, latões de tinta, jarras,
garrafões e mesmo velhos barris de rum ou vinho são úteis.
Qualquer coisa que sirva para
armazenar a água que será usada não só na higiene pessoal, mas também para cozinhar
e lavar as roupas.
Mas não foi só o WhatsApp que se
tornou uma ferramenta vital.
Depois de declarar estado de
emergência por causa da seca, o governo boliviano e a Empresa Pública Social de
Águas e Saneamento Básico (EPSAS) utilizam redes sociais como Twitter e
Facebook para receber denúncias de falta de distribuição e pedidos de água dos
bairros atingidos.
É difícil acreditar, mas às vezes
apenas um comentário feito no Facebook pode mobilizar um comboio de
caminhões-tanques de água.
Quem mais sofre com a crise hídrica em
La Paz são os setores mais carentes da população.
Marco precisa ir à casa da mãe porque
ela não consegue caminhar quatro ou cinco quarteirões carregando baldes com
mais de 20 litros de água.
Mas nas filas diante dos
caminhões-pipas não são poucos os idosos que esperam - às vezes, não há ninguém
para ajudar.
Em alguns locais, cada pessoa pode
encher apenas dois baldes, que vão ter que durar de quatro a cinco dias.
Nos primeiros dias de dezembro,
doentes renais em suas cadeiras de rodas protestaram diante do principal
hospital público de La Paz.
O motivo: a crise causou a suspensão
temporária das hemodiálises, um tratamento caro nos hospitais privados.
O governo, por sua vez, informou que
priorizou o fornecimento de água para hospitais, clínicas e casas de repouso.
As autoridades bolivianas disseram que
30 milhões de litros foram distribuídos na cidade nos últimos 20 dias.
O medo de colocar a saúde em risco ao
ingerir a água dos caminhões-pipas tornou a versão engarrafada um produto cada
vez mais valorizado.
A EPSAS afirma que a água distribuída
pode ser usada para o consumo, mas sua cor amarelada tem provocado desconfiança
- as crianças são as mais vulneráveis a infecções.
Com isso, muitas famílias têm
cozinhado com água engarrafada - mas nem todas podem pagar por ela
especialmente agora, que o preço dobrou em vários pontos da cidade.
Uma cena é comum em dias de chuva: as
pessoas recolhem a água em todos os recipientes possíveis e imagináveis, como
se fosse um presente do céu. Não importa se são pobres ou ricas.
O mal-estar é claro, e em qualquer
reunião social ou café a crise hídrica é assunto inevitável.
Mas o movimento na cidade não
diminuiu, apesar da situação.
A expectativa é que a crise supere seu
pior momento nos próximos dias. Agência BBC Brasil //