Recentemente, o debate sobre o ensino domiciliar (homeschooling em inglês) ganhou notoriedade. Um dos motivos é a aprovação do Projeto de Lei nº 3.262/2019 pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados (CCJ). O texto altera o art. 246 do Decreto-Lei nº 2.848, fazendo com que a modalidade educacional não seja mais enquadrada como crime de abandono intelectual.
Especialistas apontam possíveis problemas que podem surgir no formato e ressaltam a importância de se discutir o tema antes de regulamentar. Por outro lado, famílias que implantaram, defendem o modelo.
Representando a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, a gerente de relações institucionais e governamentais, Beatriz Abuchaim, entende que as famílias estão lutando pela possibilidade do ensino domiciliar com o intuito de prover o melhor desenvolvimento dos filhos. Mas que isso acaba, em certas circunstâncias, desprotegendo os direitos das crianças. Confira seis deles:
Amento das desigualdades sociais e educacionais por os pais não serem obrigados a mandar os filhos para escola; a desproteção das crianças e adolescentes em relação a abusos, negligências e trabalho infantil, pois, na maioria das vezes, são detectadas pelos professores; faltar o registro dessas crianças o que pode torná-las invisíveis ao Estado; a falta de supervisão adequada do que acontece no ensino domiciliar, pois as Secretarias de Educação e as escolas não têm pessoal suficiente para fazer esse monitoramento; discriminação de gênero em relação ao acesso à educação.
Com relação ao primeiro fator elencado, Beatriz alerta que a depender da legislação que regulamentar a educação domiciliar, pode levar a algumas famílias entenderem que não precisam levar o filho à escola. “Ficamos com muito medo de que crianças fiquem desprotegidas, sem ter uma educação adequada ou nenhuma, quando a gente desobriga os pais de mandarem as crianças à escola”, explica.
Para Abuchaim, no atual momento do país, a pauta sobre o ensino domiciliar não é importante para a educação em razão dos impactos da pandemia de covid-19 no sistema escolar brasileiro. A gerente de relações institucionais e governamentais afirma que a Fundação, no momento, está preocupada com a formulação de políticas públicas que englobem a maior parte das crianças e adolescentes que foram afetas pela crise sanitária, que assola o mundo, do que o homeschooling, que tem muitos desafios para se implementar.
“A posição da Fundação é de que todas as crianças devem ter direito à educação escolar, porque esse é assegurado pela constituição”, manifesta-se. Beatriz Abuchaim exemplifica o posicionamento com outros países como a Alemanha, onde a prática é proibida e com os Estados Unidos, onde é regulamentado.
Contudo, a representante afirma que, de acordo com os estudos feitos no sistema estadunidense, é difícil levantar os dados de crianças que estão em homeschooling. “Inclusive, para analisar os benefícios e/ou os déficits que podem estar tendo com o ensino domiciliar. Então, nos parece um cenário muito obscuro”, explica.
Abuchaim ressalta que o Brasil tem políticas educacionais bem estruturadas e com um significativo acesso da população, a partir dos quatro anos, à escola. Para ela, não se pode ter retrocesso nisso, pois as instituições de ensino garantem a aprendizagem e inserem as crianças na cultura e sociedade por meio de profissionais formados e capacitados. Os professores estão preparados para desenvolver as habilidades e conhecimentos com trabalhos de intencionalidade pedagógica.
A representante da Associação Nacional de Educação Católica do Brasil (Anec) e gerente na Câmara de Administração Básica da entidade, Roberta Guedes, ressalta que a socialização das crianças e adolescentes é uma vantagem da educação formal. “Entendemos que a escola é um espaço privilegiado de construção de competências socioemocionais pela diversidade e pluralidade cultural que as crianças têm acesso dentro da instituição”, afirma.
Roberta pondera que a associação não se posiciona contra famílias que adotaram o ensino domiciliar, mas se opõem a falta de discussão sobre o regramento da modalidade e a regulamentação. A entidade também é contrária à colocação da pauta como essencial frente à outras mais urgentes neste momento. Ela destaca que a vacinação da população brasileira contra a covid-19 e a formulação de políticas que promovem a conectividade deveriam ser assuntos prioritários da gestão pública.
“É preciso discutir o acesso à educação, o retorno seguro das escolas e o que fazer para recuperar os direitos de aprendizagem das crianças e adolescentes. Pesquisas mostram o grave problema na formação escolar em razão do ensino remoto”, declara Roberta.
A gestora da Anec ressalta que discutir o ensino domiciliar sem audiência para consultar a opinião popular e escutar especialistas, transforma a pauta em interesse político. Mas, considera que o tema deveria ser tratado como uma política pública.
O assistente social, doutor em sociologia e professor emérito da Universidade de Brasília (UnB) Vicente Faleiros afirma que a relação familiar com a criança é complexa sob a perspectiva de analisar o papel dos pais com base em teorias e percepções. “Há a visão tradicional de que o pai e a mãe são corretores e disciplinadores. Então, a criança deve seguir o padrão da família, isso é o que chamamos de teoria sistêmica da família”, explica.