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02/01/2021 03:00:00

PerifAnálise: psicanalistas periféricos querem que profissão deixe de ser coisa de elite


PerifAnálise: psicanalistas periféricos querem que profissão deixe de ser coisa de elite

Quando entrou para estudar no Instituto Sedes Sapientiae, um dos mais tradicionais em formação de psicanalistas do Brasil, localizado no bairro de Perdizes, na Zona Oeste de São Paulo, o psicólogo e psicanalista Jefferson Santos Pinto, de 35 anos e morador do distrito de São Mateus, no extremo leste da cidade, conta que se sentiu "praticamente num país nórdico". Além dele, os outros poucos negros na instituição eram o segurança e a faxineira.

Também psicóloga, psicanalista e moradora de São Mateus, Paula Eloisa Jameli, de 45 anos, levou dez anos para se formar na faculdade de psicologia. Conciliando casa, filho, um trabalho no Jabaquara (na Zona Sul de São Paulo) e a faculdade em Itaquera (que também fica na Zona Leste, mas a cerca de 10 km de São Mateus), ela enfrentou horas de transporte e a falta de tempo e dinheiro para completar sua formação.

Rosimeire Bussola Santana Silva, de 33 anos e também de São Mateus, só foi ouvir falar da psicanálise na faculdade de psicologia. Formada, já trabalhou no SUS (Sistema Único de Saúde) com medidas socioeducativas em meio aberto — quando adolescentes que cometem infrações cumprem pena sem privação de liberdade — e trabalha atualmente num Caps (Centro de Atenção Psicossocial), também no sistema público de saúde.

Juntos, os três integram a Clínica Psicanalítica PerifAnálise, coletivo de autointitulados "perifanalistas" que atuam em São Mateus.

Criado às vésperas das eleições de 2018, diante das inquietações dos psicanalistas com os efeitos sobre a periferia da ascensão do que consideram um "discurso racista, machista e homofóbico crescente", o coletivo começou com três pessoas e um grupo de estudos.

Criado por mulheres, em resposta a retrocessos

Imagem mostra uma rua de Vila Flavia, comunidade do distrito de São Mateus, na Zona Leste de São Paulo. Há uma fileira de carros estacionados, casas com grafites nos muros e, ao fundo, casas de tijolo aparente, típicas das periferias
 
Legenda da foto,

Grupo buscou adaptar a experiência das Clínicas Públicas de Psicanálise do centro de São Paulo à realidade periférica

 

"A PerifAnálise surgiu num momento de crise política, justamente porque um grupo de mulheres, por trabalhar na periferia e no serviço da assistência, se sentiu muito provocado e atravessado pelo contexto de retrocessos que estava se apresentando ali, às vésperas das eleições de 2018", conta Paula, que começou a iniciativa com Rosimeire e mais uma colega, que haviam trabalhado juntas com medidas socioeducativas em meio aberto.

"Fomos pensando em fazer algo com isso, que estava nos provocando, nos inquietando e angustiando, porque sabíamos que isso poderia produzir muito mais precarização do que aquilo que já víamos acontecendo na periferia. As tantas dificuldades que nós, como estudantes, como trabalhadores, enfrentamos nas regiões periféricas", completa.

O grupo começou estudando O Mal-estar na Civilização, livro de 1930 do pai da psicanálise, Sigmund Freud.

Enquanto isso, no centro de São Paulo, avançava o movimento das Clínicas Públicas de Psicanálise, que visavam democratizar a prática, oferecendo atendimento gratuito em espaços públicos, como o centro cultural Vila Itororó, a Casa do Povo e a Praça Roosevelt, respectivamente nos bairros centrais do Bixiga, Bom Retiro e República.

"A gente começou a pensar: e a periferia?", conta Meire, como Rosimeire é mais conhecida.

Favela Galeria

Com Jefferson já agregado ao grupo, agora com quatro pessoas, eles passaram a pensar em como adaptar a experiência das Clínicas Públicas de Psicanálise à realidade periférica.

"A primeira coisa que nos demos conta é que, se no centro as ruas e praças estão sendo ocupadas via psicanálise, na periferia, é sobre outra coisa", diz Meire. "A periferia já ocupa bastante a rua. As casas são pequenas, em geral não têm quintal, então as pessoas já ocupam bastante o espaço público."

Em busca de um lugar em que os moradores pudessem ter uma experiência clínica um pouco mais reservada, o coletivo encontrou o espaço cultural Favela Galeria, na Vila Flavia, comunidade de São Mateus que é parte da história do movimento rap e do grafitti na Zona Leste.

"Começou com as pessoas dizendo, dentro mesmo da galeria, que estava rolando PerifAnálise. O famoso 'boca a boca', fazendo a palavra circular. Depois, apostamos na rede social, no Instagram", conta Meire.

"Quando passamos a dizer: estamos aqui, venham, eles começaram a vir. E com isso, vieram as mais diversas histórias, as mais diversas vivências e estamos aí, desde então, podendo escutá-los."

Espaço de atendimento da PerifAnálise no centro cultural Favela Galeria. A foto mostra duas cadeiras de escritório, uma em frente à outra, com uma parede grafitada ao fundo
 
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No centro cultural Favela Galeria, atendimento acontecia em meio a passagem do carro do ovo, de carro tocando funk e de gravação de videoclipes. Isso não impedia analisantes de seguirem falando

Ser psicanalista na periferia

Questionada sobre qual é o objetivo do grupo, Meire responde na lata.

"É ser psicanalista na periferia. É isso que me vem à cabeça. É ser psicanalista na periferia e que as pessoas possam vivenciar a experiência da clínica psicanalítica, caso elas queiram."

Sobre a mesma questão, Jefferson elabora um pouco mais.

"Na minha perspectiva, para além de ser um analista na periferia, o objetivo é também que esse seja um ofício comum. Quando fui convidado pela Paula e pela Meire para compor o PerifAnálise, eu estava estudando no Sedes, estava estudando no AMMA Psique e Negritude, ambos no Sumaré. E a minha analista é de Pinheiros", conta Jefferson.

"Ou seja, eu gastava aí de seis a oito horas de transporte para poder me locomover para fazer essa formação. Para mim, o interesse é que tenha isso do lado de casa. E que o lado da minha casa não seja no centro."

Atualmente, a PerifAnálise é formada por seis psicanalistas e duas pessoas no início da formação em psicanálise.

A iniciativa, porém, é alvo de questionamentos de outros profissionais da área.

"Muitas vezes somos questionados 'Isso que vocês fazem é psicanálise?' E essa pergunta revela o caráter elitista que ela tem. Porque parece que sai da mão de alguns e vai para a mão de outros e isso incomoda. E esse incômodo, sabemos de onde vem. É de descentralizar ela, de tornar ela popular", completa Jefferson.

Reparação histórica no Sedes

O psicanalista também é parte agora de um grupo de trabalho sobre relações raciais no Instituto Sedes Sapientiae, chamado Grupo A Cor do Mal-Estar.

"Estamos pensando como estruturar políticas de restauração histórica no Sedes", conta Jefferson, lembrando que o instituto, criado em 1977, teve um papel relevante na resistência à ditadura militar no Brasil, acolhendo perseguidos, organizando reuniões e oferecendo apoio psicológico aos afetados pelo governo autoritário.

"Mesmo tendo feito frente política à ditadura, os novos contornos vão explicitando que existem hoje outras frentes de luta e política que o Sedes está tendo um ponto cego", diz o analista.

Ele conta que estão em estudo pelo grupo de trabalho principalmente políticas de cotas.

"É uma estruturação de reparação histórica. Então é cota para alunos, professores negros, coordenadores, um corpo docente e discente mais diversos. O conteúdo versando com as relações raciais. Não é somente dar oportunidade a quem nunca teve ou quem foi excluído dessa lógica. Mas reestruturar a lógica de se pensar."

A questão do dinheiro

Imagem mostra uma rua de Vila Flavia, comunidade do distrito de São Mateus, com carros estacionados e céu nublado
 
Legenda da foto,

A periferia já vivia uma pandemia antes da chegada do coronavírus, diz psicanalista. "Seja na precarização, seja no sucateamento dos serviços públicos, seja por suas vivências na favela"

 

Outra diferença da PerifAnálise com relação às Clínicas Públicas de Psicanálise do centro de São Paulo diz respeito à relação com dinheiro.

"As pessoas pagam, pagam direto para seus psicanalistas, os valores possíveis em combinados com os analistas", diz Meire.

"Quando começamos a PerifAnálise, num primeiro momento, o que nos veio à cabeça é que as pessoas da periferia poderiam não ter condições para arcar com o pagamento, justamente por serem pobres", conta Paula.

"Vamos fazendo esse percurso na clínica, e essa ideia se desfaz. Claro, têm pessoas que nós atendemos que de fato não podem pagar. Mas têm pessoas que podem e, mais do que isso, elas querem pagar. Elas fazem questão de pagar. Então isso é algo que a gente vai tratando muito no caso a caso."

Chegada da pandemia e migração para o online

Com a chegada da pandemia, a PerifAnálise migrou seus atendimentos para o online, através de videochamadas ou chamadas de áudio.

Com a mudança, as precariedades de viver em um bairro periférico se fizeram presentes, na conexão de internet instável, dificuldades para as pessoas terem privacidade no atendimento em casas com poucos cômodos e muitos moradores, e falta de dinheiro, que levou alguns analisandos que faziam questão de pagar a desistirem de dar continuidade ao atendimento.

"Enquanto estávamos dentro da Favela Galeria, havia muitos ruídos lá também. A gente estava dentro de uma comunidade, onde passava o carro do ovo, o carro tocando funk. Chegamos a fazer as sessões de análise tendo gravação de clipes dentro da Favela Galeria. Tendo circulação de pessoas fazendo visitação", conta Paula.

"E é muito interessante porque, na maioria das vezes, isso não impediu que o analisante continuasse falando. E eu acho que isso é muito semelhante a esses ruídos de conexão que a gente vai tendo com a internet."

Jefferson destaca que a análise parte de um desejo.

"O desejo de ser analisado, de ser analista, de ser analisante. É um investimento libidinal que o sujeito faz para poder acontecer", diz o psicanalista.

"Muitas vezes a internet está caindo, ele vai e compra um pacote de dados, vai para um ambiente melhor na casa. Muitas vezes não tem a privacidade necessária ou a que ele gostaria, ele vai para dentro do carro, para a porta de casa, para a praça da rua. A periferia vai entrando no cenário da análise pessoal daquele sujeito."

Os membros do coletivo contam ainda que a migração para o online trouxe novas possibilidades, com a entrada para o grupo de pessoas que não são de São Mateus e a viabilidade de atender pacientes de outros bairros e até de periferias de outras cidades.

Pandemia não é uma preocupação central

Eles destacam, porém, que a pandemia não aparece como uma preocupação central de seus analisantes, mas como um pano de fundo para outras inquietações e para as dificuldades financeiras impostas pela nova realidade.

"Nas minhas experiências clínicas, o medo de se contaminar não apareceu", conta Meire.

"Uma fala de uma analisante me marcou muito, porque ela trabalhava no metrô vendendo bala e ela deu uma parada na pandemia. Depois, precisou retomar e passou a perceber sintomas. Aí a preocupação dela era poder fazer o isolamento, poder ficar em casa e não levar o vírus a outras pessoas."

"Como a pandemia vai surgindo na minha clínica, é como ela vai atrapalhando essa questão econômica mesmo. De as pessoas não poderem ir trabalhar", conta Jefferson.

"Por exemplo, quando eu atendo o público direcionado à vida artística. Para esses atendidos, a arte vai ali na sua pulsão de vida. Não é somente o seu valor econômico, mas tudo o que se move em torno disso. E ficar dentro de casa, ficar isolado, acaba sendo um sofrimento porque ele não tem a possiblidade de exercer o seu ofício."

Periferia já vivia uma pandemia antes do coronavírus

Para Paula, a periferia "já vivia uma pandemia" antes da chegada do coronavírus.

"Seja na precarização, seja no sucateamento dos serviços públicos que a periferia muitas vezes não consegue acessar, seja por suas vivências na favela. Pelas suas vivências no crime, nas ações truculentas da polícia, na relação de violência doméstica", cita a psicanalista.

"As pessoas já estão habituadas com esse sofrimento, o sofrimento da falta de recursos, da falta do trabalho, da falta do dinheiro. Ou seja, existe uma angústia presente que, claro, a pandemia atualizou."

"A pandemia vem trazer do que? Uma ameaça de finitude. De morte. Que, para a periferia, tem outros desdobramentos, porque ela convive muito na linha de pulsão de morte", afirma Paula, citando termo psicanalítico introduzido por Freud.

"Acho que essa é uma das coisas mais importantes de falar, porque ainda hoje vejo muita gente criticando que na periferia ninguém usa máscara. E isso também é uma realidade."

"Na assistência social, a gente faz as visitas domiciliares para as famílias e quando entra dentro das periferias, realmente, ninguém usa máscara. Isso também diz um pouco disso. Que essa periferia já vivia uma pandemia. Principalmente os pretos. O povo preto já vivia muito mais essa pandemia."

BBC News Brasil



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