A passagem de Pelé pelo futebol colocou o Brasil no mundo, de certa maneira. O País, antes, era visto como um território tropical, de belezas naturais e vasto litoral, sem, no entanto, causar impacto por suas façanhas culturais, esportivas ou por seus personagens que, por aqui, já esbanjavam riqueza criativa. Carmen Miranda, que espalhou sua musicalidade pelo mundo, havia sido uma exceção.

E, assim que ele se despediu do futebol, em um amistoso entre os dois clubes pelos quais atuou, Santos e Cosmos, em 1977, pode-se dizer que o futebol brasileiro ficou um pouco órfão. Claro que outros craques vieram, mas o vazio da ausência de Pelé gerou momentos de crise, movida, principalmente, pela exigência de o Brasil jogar sempre como se tivesse Pelé.

"Pelé se tornou uma figura marcante, inclusive como um símbolo da maior qualidade. Esse sentimento ficou presente no futebol brasileiro, como uma referência, uma meta de que temos de melhorar sempre, buscar o máximo, seja técnico, jogador e até em outras profissões", disse Tostão.

Um Michelângelo, um Da Vinci e um Pelé

Pelé e Tostão mostraram um entendimento pleno durante a Copa de 70. E Tostão conta que teve de tentar entender o que se passava na mente genial do companheiro de seleção brasileira, que, às vezes intuitivamente e outras conscientemente, criava jogadas como se estivesse desenhando obras-primas no campo.

Vide a meia-lua que ele deu no goleiro uruguaio Mazurkiewicz, o chute do meio-campo que quase encontriu o tcheco Viktor ou a cabeçada milimétrica, pura geometria e física unidas, que foi desviada de forma magistral por Gordon Banks.

Foram, apenas, as de maior repercussão internacional. Dentro do País, testemunhas relatam façanhas inesquecíveis como a do gol contra o Fluminense, em 1965, que deu origem ao chamado gol de placa, após, inebriado, o jornalista Joelmir Betting ter providenciado uma placa em homenagem ao gol, até hoje nas paredes do saguão do Maracanã. Ou a do gol contra o Juventus, em 1959, após ele sair "chapelando" adversários, inclusive o goleiro Mão de Onça.

É por isso que o próprio Pelé sempre afirmou que, como houve apenas um Michelângelo e um Leonardo da Vinci, Pelé será sempre único. Ele também sobrepujou o sentido futebolístico da afirmação para elevá-lo a um sentido artístico e humanista.

Pelé é o único jogador que conquistou três Copas do Mundo

Pelé é o único jogador que conquistou três Copas do Mundo

Instagram Pelé

"Jogar com ele era muito fácil e muito difícil. As duas coisas. Teoricamente seria mais fácil porque ele simplificava tudo para um companheiro. Por outro lado, era difícil, sentia muitas vezes dificuldade em acompanhá-lo, tinha um raciocínio rápido que se iniciava antes mesmo de a bola chegar até ele. Então eu olhava e pensava: 'O que será que ele vai fazer?'. Era preciso tentar acompanhar o raciocínio e o reflexo dele. Tente fazer isso quando o tinha ao meu lado", contou Tostão.

A consagração precoce de Pelé, após estrear em 1957 na seleção e ser campeão mundial no ano seguinte, também inspirou jovens daquela geração, como o ponta-esquerda Edu, Jonas Eduardo Américo, de 71 anos. Driblador e espontâneo, até hoje ele se orgulha de seu estilo bem brasileiro e, no seu e-mail, se intitula edudriblador@.

Ele não tem dúvidas de que Pelé sempre foi sua maior referência em campo.

"Pelé, o Rei do Futebol, ele representou e representa muito não só para o Brasil como para o mundo. Em termos de responsabilidade, determinação, disciplina, é exemplo de conduta e profissionalismo. Jogamos juntos por 10 anos , dentro de campo genial, e digo isso com letras maísculas, fora de campo um grande amigo e exemplo de humildade" observou Edu.

Ainda hoje, reverbera nos ouvidos de Edu, a afirmação do quase irmão mais velho antes da Copa de 1970, quando estiveram no mesmo grupo. Pelé buscava reconstruir sua imagem após a Copa de 1966, da qual saiu contundido, após dura entrada do zagueiro português Morais, durante a frustrante campanha da seleção.

No ano seguinte, ele havia até se despedido do escrete, termo tão usado por Nelson Rodrigues, mas resolveu retornar para o Mundial de 1970, em busca de sua reafirmação.

"Um fato importante durante nossa convivência nas concentrações aconteceu na Copa do Mundo de 70 , quando ele nos disse que se preparou bem para aquela Copa e, antes mesmo dela se iniciar, afirmou que o mundo ia saber quem era o Pelé", disse.

Pelé no marketing

Era mais uma questão íntima dele já que, por tudo que havia feito, seu talento era inquestionável. Mas a mínima cobrança externa já acionava uma pressão interna que o mobilizava a seguir rumo a novas conquistas.

Esse alimento, chamado de competitividade, fez Pelé ser pioneiro do futebol moderno. Deu origem ao glamour da camisa 10, após o craque ficar, por acaso, com esse número no Mundial de 1958. A então CBD (Confederação Brasileira de Desportos, hoje CBF) não havia enviado o número de cada jogador e teve de fazê-lo às pressas, na véspera do início da competição.

Pelé também foi o primeiro a entrar com mais ênfase no mundo dos negócios no futebol, apesar de Leônidas da Silva ter dado origem ao famoso chocolate "Diamante Negro".

Além do apelido de "Rei", Pelé tem outros dois títulos exclusivos e individuais. Foi eleito o "Atleta do Século”, em prêmio concedido pela revista francesa L’Équipe em 1981 e o “Melhor Jogador do Século da Fifa”, taça recebida em 2001.

Pelé fez 1.281, segundo IFFS

Pelé fez 1.281, segundo IFFS

Estada?o Conteu?do - 1/1/1956

E se hoje, com chuteiras e gramados muito melhores, Messi já desbrava zagas vindo de trás com a bola dominada, Pelé tem o mérito de ter sido o primeiro a fazer isso, de uma maneira ainda mais marcante, por ser inovadora.

O gênio é alguém que cria algo novo, que percebe o que ninguém percebia e traz à tona o que já existia, mas estava oculto. Pelé fez isso e nomes como Rivellino, Zico, Messi e Maradona tiveram o mérito de dar continuidade em um alto nível.

Agora, seu antigo assessor, Pepito, o José Fornes, confirma que ele ficou mais recluso. Pelé e Pepito se conhecem desde os anos 60, quando Pepito era promotor de vendas da Varig e negociava as viagens do Santos com a diretoria do clube.

Ambos acabaram se tornando amigos. Pelé então chamou Pepito para abrir a primeira empresa que o representava. Até hoje mantêm contato, apesar de o seu representante oficial agora ser a Sports 10.

Mesmo distante, em sua casa em Santos, Pelé continua procurado. São mais de 2 mil pedidos de entrevistas, fila acumulada em função da comemoração dos 80 anos. É um sinal de que continua em alta.

Em tempos de pandemia, todo o cuidado é pouco. Ainda mais em função dele estar no grupo de risco, mais vulnerável à covid-19. Pelé, que já jogou bem em todas as posições, preferiu ficar mais na "retaguarda" neste momento. Pai, avô, filho de Dondinho e de dona Celeste e irmão de Zoca e de Maria Lúcia, sempre foi adepto das celebrações em família. Desta vez, também pelo bem dele e do Brasil. Afinal, o octogenário Pelé continua a atrair multidões. Que se aglomeram ao seu redor.