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Especial
27/09/2020 18:00:00

Dia Nacional do Surdo: representação de grupo nas telas ainda é exceção


Dia Nacional do Surdo: representação de grupo nas telas ainda é exceção

O Dia Nacional do Surdo é comemorado anualmente em 26 de setembro como forma de lembrar as conquistas desse grupo no Brasil e também destacar os desafios que eles ainda enfrentam. Um deles está na baixa presença desse grupo em produções audiovisuais, com uma falta de inclusão tanto pensando no público quanto em atores.

A data foi instituída lei nº 11.796, de 2008, e o dia escolhido é o mesmo da fundação do Instituto Imperial de Surdos-Mudos, escola voltada para esse público, em 1857. A população surda brasileira teve vários avanços desde então, mas ainda é difícil encontrar, por exemplo, uma produção brasileira na língua brasileira de sinais (Libras), ou com atores surdos.

Esse cenário já havia chamado a atenção de Alessandra da Rosa Pinho quando ela realizava uma graduação em Libras na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e foi isso que a motivou a escrever e produzir a série Crisálida, que está disponível na Netflix.

A produção, de quatro episódios, foi inspirada em um curta metragem, e havia estreado anteriormente na TV Cultura. Seus grandes diferenciais, comenta Alessandra, estão no fato de ser bilíngue, com diálogos misturando português e Libras, ter todos os personagens surdos interpretados por atores surdos e mostrar mais da realidade desse grupo. Em relação às duas primeiras características, a série é a primeira no Brasil, explica ela.

“Pensamos no produto para o público ouvinte [pessoa não surda], para que eles acessem e compreendam a cultura surda, entendam a atuação deles na sociedade. Queremos que os dois [ouvintes e não ouvintes] se sentem no mesmo sofá para assistir ao produto. Os surdos são invisíveis, é uma população marginal na sociedade, até pela barreira da comunicação”, comenta Alessandra.

A série foi inspirada em diversas histórias que ela ouvia de colegas de curso surdos, que a motivaram, depois de 20 anos na área de audiovisual, a fazer uma produção diferente. “Eu percebi que não estava ali para ajudar, eles não precisam de ajuda”, ressalta ela.

O diretor da série e do curta, Serginho Melo, destaca que houve uma preocupação grande em garantir que a série mostrasse de forma fiel o dia a dia dos surdos, conseguir mostrar “o que o surdo faria” e por isso foi contratado um consultor surdo, que ficou envolvido com o projeto da produção de roteiro até a gravação.

Até pelo tom da série, a acessibilidade foi uma preocupação muito grande. A produção conta com audiodescrição e também a descrição das cenas em Libras, que foram incluídas mesmo depois da produção ter esgotado o financiamento, obtido a partir de um edital público.

“Todas produções deveriam ter recursos de acessibilidade, isso é algo previsto em lei para projetos produzidos com dinheiro público, o problema é que a maioria dos produtores não veem surdos e cegos como espectadores, não se preocupam com qualidade, resultado final”, comenta ele.

Apesar dos diferenciais da obra, e talvez exatamente por eles, a equipe encontrou dificuldade para encontrar uma empresa interessada em exibir Crisálida. O curta foi gravado em 2014, a série entre 2016 e 2018, ambos via editais públicos, mas a série só chegou à Netflix e à TV Cultura em 2019.

“Na hora do contrato barrava na hora da acessibilidade, não queriam estar assumindo a questão de colocar um produto com acessibilidade”, lembra Alessandra, destacando que havia um receio de incluir uma obra com acessibilidade e não ter essa acessibilidade necessária em todas as outras produções de um canal.

Mesmo com a inspiração em histórias reais, os enredos de cada episódio foram criados do zero. Outro diferencial da série é que os atores surdos são todos colegas do curso que Alessandra faz ou membros da comunidade surda de Santa Catarina, e muitos não tiveram contato com atuação antes. Por isso, foram realizadas algumas oficinas para dar dicas e ajudar o elenco.

Uma das atrizes surdas de Crisálida é Miriam Royer. Ela é protagonista do segundo episódio da série, em que vive uma mãe surda cuja filha é ouvinte, e mostra os desafios dessa dinâmica. A atriz chegou a ter experiências no teatro, com surdos e ouvintes, quando era criança, mas se afastou desse mundo quando começou a trabalhar.

A atriz Miriam Royer (à esquerda, com roupa preta) é surda, e interpreta uma mãe de uma criança ouvinte © YouTube / Série Crisálida / Reprodução A atriz Miriam Royer (à esquerda, com roupa preta) é surda, e interpreta uma mãe de uma criança ouvinte

“Quando a Alessandra me procurou para participar do curta eu relembrei daquilo tudo, mas eu sabia que tinha diferenças de um teatro para um produto audiovisual, precisava decorar os roteiros, estudar mais”, lembra Miriam.

A atriz comenta que ficou muito ansiosa com o lançamento da série, e que não era a única. Conforme as informações sobre a produção foram se espalhando pela comunidade surda brasileira, a equipe de Crisálida foi recebendo mais e mais mensagens perguntando quando ela seria lançada. O interesse porém, não era o mesmo nas empresas que poderiam exibir o produto.

“A gente passou por um período ali de um ano que foi quando a série ficou pronta, ela foi bem difundida na comunidade surda pelos surdos, eles sabiam que existiam e a gente não podia exibir”, lembra Serginho. Quando a série foi finalizada e começou a ser exibida, o sucesso, em especial com o público surdo, foi evidente.

O diretor lembra da primeira exibição da produção, em um auditório que comportava poucas centenas de pessoas. O local não apenas lotou, como também havia fila fora dele de pessoas querendo ver a obra, em sua maioria surdas. Para ele, isso mostra como o público surdo anseia por produções em que é representado, mas ainda não é visto como mercado de interesse por produtoras e empresas.

“Eu fiquei torcendo para que Crisálida fosse para alguma plataforma digital, e depois quando saiu foi uma emoção muito bacana, eu fiquei muito emocionada mesmo”, comenta Miriam.

Ela destaca que conhecidos da comunidade surda ficaram ainda mais felizes por saber que os personagens surdos só eram interpretados por surdos. Em geral, quando são retratados em produções, personagens surdos são interpretados por atores ouvintes: “a comunidade amou ainda mais, foi muito impactante”.

O protagonista ouvinte da série é o intérprete de Libras Bruno, vivido por Thiago Teles, que também é intérprete na vida real. Além da atuação, ele também ajudou no processo de interpretação das cenas e tradução do roteiro para os atores surdos, algo com que ele já estava acostumado.

“A experiência foi muito legal, eu fiquei bem feliz, eu tive um processo de preparação um pouco maior, preparação física, foi bem legal, bem desafiador, foi muito legal. Nunca pensei que ia passar por isso”, comenta o ator. Ele destaca que viver um intérprete de um ambiente educacional e jurídico foi diferente, já que ele não costuma trabalhar nessas áreas.

Alessandra destaca que um dos pontos positivos de Crisálida é mostrar diversos aspectos da cultura surda que, em geral, a população ouvinte desconhece, como os diferentes tipos de línguas de sinais, comunicação entre pessoas surdas e ouvintes, famílias com pessoas surdas, o uso de implante coclear e as formas de comunicação desse grupo.

Segunda temporada e o impacto social da produção

Alessandra comenta que se sente “muito realizada” por ter produzido a série, em especial pelos temas que são mostrados. “Nós ouvintes deveríamos aprender Libras, a gente aprende inglês, espanhol mas não aprende Libras, tem que mostrar pra sociedade que estamos convivendo com pessoas surdas e às vezes nem sabemos, tem um preconceito grande, queremos mostrar que eles são capazes, só falta isso da comunicação”, afirma.

“É uma responsabilidade grande, porque sabemos o engajamento, eu sinto que é uma missão, a gente respira o projeto. A gente tenta se aproximar do público, até porque a gente se sente um pouco marginal, passamos por situações em que o projeto é visto como uma contrapartida social, mas agora tem um reconhecimento. É muito gratificante, a gente poder defender uma causa”.

E a série foi importante não apenas para o público, mas para a própria equipe envolvida. Serginho comenta que graças à série, sua produtora, a Raça Livre Produções, agora se dedica à produção de conteúdo acessível: “a aceitação do público foi tão grande, eu particularmente me engajei nessa parte de acessibilidade audiovisual”.

Apesar da jornada difícil para a produção do curta e da série, Alessandra garante que a produção de uma segunda temporada já está nos planos da equipe. Ela foi aprovada em um edital público, essencial para obter a verba necessária para a produção, mas a verba ainda não foi liberada.

“A gente sabe que tem um atraso natural, com a pandemia, mas não pode ser usado como desculpa”, afirma Alessandra. Ela destaca que tem notado mais dificuldades e entraves nos últimos anos na liberação de verba para produções, o que afeta produtos como Crisálida.

“Estou esperançosa para gravar, muitas pessoas me perguntam sobre e eu falo que espero que aconteça, estou torcendo”, comenta Miriam, destacando a existência, agora, de um público fiel da produção.

A ideia, segundo Alessandra, é aprofundar os personagens apresentados na primeira temporada, incluindo os de Thiago e Miriam, mas também introduzir novos personagens surdos, tentando até trazer atores surdos de outros estados do Brasil, algo que requer mais verba.

Com a verba liberada, a produção deverá ser gravada em 2021 e, idealmente, estrear no Dia Nacional do Surdo no mesmo ano. A TV Cultura já confirmou que irá exibir a nova temporada. Outra expectativa é que a produção seja disponibilizada em outros lugares do mundo pela Netflix. Atualmente apenas o público do Brasil e Portugal podem assistir.

“Os produtos que estão dando certo estão ligados a uma causa, e isso é importante, o cinema é uma ferramenta de transformação social, fazer um produto que muda a vida das pessoas é muito gratificante”, comenta Alessandra.

Thiago considera que a série pode ser um “divisor de águas”, mostrando para produtoras e canais de televisão que o público surdo “existe e é consumidor”. “Eu fiquei muito feliz quando a Alessandra me convidou pra participar, porque pensei que a gente ia produzir entretenimento pros surdos. Eles sentem falta, são consumidores, porque eles dependem da legenda”, afirma.

“Estamos dando o sangue pra fazer a segunda temporada de Crisálida porque vimos a importância como pessoa, para essas pessoas e também para ser um incentivador disso para outros criadores, produtoras, que vejam a importância disso, visualizar esse grupo [dos surdos] como consumidores”, defende Serginho.

MSN



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