Quanto mais a gente revê uma imagem escandalosamente impactante, menos impacto haverá – e o escândalo vai sumindo. Aquilo que é exposto todos os dias para o mesmo público deixa de ser novidade na velocidade da luz. E se não tem novidade, a plateia perde o interesse. Isso ainda não ocorreu com o vídeo que mostra um desembargador de São Paulo num espetáculo – bruto e patético – de abuso de autoridade. Até agora, a cada nova olhada naquelas imagens, o episódio se desdobra, tratado já como a ilustração de fenômeno tipicamente brazuca. Tá na ordem do dia.

O vídeo veio a público no último dia 18/06. Nas imagens vemos o desembargador Eduardo Almeida Prado de Siqueira sendo abordado por guardas municipais. Eles pediam que o magistrado pusesse máscara de proteção, que é obrigatória em Santos, assim como em quase todo o país. A partir daí, começa a sessão de boçalidade e prepotência que o noticiário não para de reexibir. Já se passaram nove dias desde que aquilo foi ao ar pela primeira vez.

O sórdido comportamento do desembargador Eduardo Siqueira agora é alvo de investigação no Conselho Nacional de Justiça. Em pleno domingo, o corregedor nacional, ministro do STJ Humberto Martins (foto), determinou abertura de uma Reclamação Judicial. Ele deu 15 dias para que o integrante do Judiciário paulista explique sua atitude. Siqueira chegou a rasgar a multa que acabara de receber pelo não uso da máscara.

Como mostrou o Fantástico, o histórico do doutor Siqueira não deixa resquício de dúvida sobre o caráter de Sua Excelência. Em 30 anos zanzando nas salas e corredores do TJ-SP, o sujeito nunca escondeu sua inclinação à patifaria. Ao longo desse período respondeu a 42 ações em processos disciplinares. A maioria foi arquivada, mas ele também foi punido mais de uma vez com “censura”. A complicação agora pode ser maior.

O caso do desembargador Siqueira é, de longe, o de maior repercussão a chegar às mãos do alagoano Humberto Eustáquio Martins. Ele é dono de uma cadeira no Superior Tribunal de Justiça desde 2006. Está no cargo de corregedor no CNJ desde agosto de 2018. Ao ser ouvido pela Globo, reconheceu que o alvo da investigação é alguém cheio de problemas. Com o clamor nacional, o Judiciário não terá como amansar para um dos seus.

Lá no começo eu falei de fenômeno tipicamente brasileiro. É a velha carteirada misturada à lei do mais forte, digamos assim. Sabe com quem está falando? (Todo mundo voltou a Roberto DaMatta). O cargo no topo da hierarquia, com todos os privilégios que isso garante, dá ao cara a asquerosa convicção de que ele está acima de qualquer um. E está acima das leis. Foi assim no passado, é assim no presente. Muda algo daqui pra diante?

Não sabemos. No caso específico do desembargador Siqueira, as imagens são muito eloquentes. Por qualquer ângulo que se olhe, é repulsiva a postura daquele senhor. Por isso, reitero, ele receberá alguma punição mais séria do que as anteriores. Mas isso somente vai ocorrer devido ao flagrante de celular – e pelos novos tempos que, bem ou mal, balançam tradições que pareciam intocáveis para todo o sempre. É por aí.

Ao abusar vergonhosamente da autoridade que tem, o desembargador fanfarrão deveria ser demitido. Pelo que disse o ministro Humberto Martins, as barbaridades anteriores cometidas pelo magistrado serão revistas. Ele já agrediu fisicamente um advogado e usou uma arma de fogo para intimidar participantes de uma audiência. Vamos relembrar: Siqueira apronta há mais de três décadas. Pelo conjunto da obra, não merece perdão.

Para fechar, digo que o caso desse elemento tem um lado pedagógico. Explico: com toda essa repercussão negativa para ele, colegas de profissão devem repensar seus atos e postura no Judiciário. Ou alguém acha que Eduardo Siqueira é apenas uma maçã podre num reino de virtuosos? Tragicamente, como já escrevi neste blog, o mundo das togas flutua noutro sistema solar. O Brasil precisa que esse planeta paralelo volte à realidade.