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Economia
26/05/2020 16:00:00

Ana Botín: “A Europa precisa entender que solidariedade não é caridade”

A presidenta do Banco Santander conta como vive a crise sanitária e o confinamento, faz seu diagnóstico da situação econômica e propõe medidas de futuro para a recuperação


Ana Botín: “A Europa precisa entender que solidariedade não é caridade”

A presidenta do Banco SantanderAna Botín, de 59 anos, ouviu falar do coronavírus pela primeira vez durante um jantar em Davos, em janeiro. Pouco depois, o tema foi abordado numa reunião do Business Council, que reúne presidentes das maiores empresas do mundo, sobretudo norte-americanas. Ela acha que esses fatos lhe serviram para que reagisse rapidamente e se preparasse semanas antes de o confinamento ser decretado na Espanha, embora não pudesse imaginar até que ponto a covid-19 abalaria o mundo. A presidenta do banco concede a entrevista depois de uma sessão ao vivo com os funcionários a partir de Boadilla del Monte, município vizinho a Madri onde fica a sede da instituição. O formato, que ela criou semanas atrás, se chama Ask Ana.

Pergunta. Perdeu alguém próximo pelo coronavírus?

Resposta. Assim que o confinamento começou, me telefonaram de Portugal para me dizer que tinha morrido António Vieira Monteiro, nosso presidente lá. Até o momento é a única pessoa no grupo falecida pelo coronavírus. Foi um golpe muito duro, tínhamos muita relação e me afetou muito. Todos nós perdemos alguém, amigos, familiares e conhecidos.

P. Como viveu o confinamento?

R. Afetou a todos nós, ninguém esperava que fosse tão longo. Obviamente, no meu caso e em outros, somos muito afortunados porque podemos teletrabalhar e estamos em condições muito diferentes de outras pessoas, mas ajudou todos nós a valorizarmos mais as coisas que realmente importam. Acredito que esta seja uma lição que não devamos esquecer. Agora sabemos muito bem o que valem a segurança física e ter uma razoável certeza de que nossas vidas não estão em perigo.

P. O que valoriza mais agora?

R. O primeiro é a saúde, saber que você pode sair à rua, estar com sua família e seus amigos. Na minha geração nunca tínhamos vivido esta falta de liberdade para fazer as coisas mais simples, como sair para jantar, ir a um show ou visitar sua mãe. Isto é algo que nos faz refletir.

P. Esta crise é diferente?

R. Tenho a vantagem de ter vivido muitas crises neste e em outros países. Cada crise foi mais difícil e diferente que a anterior. Esta é mais grave porque é global e põe em risco a saúde de todos. Em outras, o mais importante era a perda do trabalho ou o medo a perdê-lo; mas o medo da doença, ou que aconteça algo com alguém próximo a você, gera outro nível de ansiedade.

P. Em que isso mudará a sociedade e o capitalismo?

R. A pandemia, mais que mudar o mundo, o que provavelmente fará será acelerar as tendências de mudança que já despontavam havia algum tempo. Que tendências ela acelera? Uma é a do digital frente ao físico, embora eu siga achando que a relação pessoal continuará sendo muito importante, porque gera mais confiança. A crise também vai acelerar a diferença entre ganhadores e perdedores, tanto entre os blocos econômicos, China, Estados Unidos e Europa, como entre países e tipos de emprego. Temos que chegar a um novo contrato social, que implique a todos e que nos permita crescer de maneira inclusiva e sustentável. A base de partida é apoiar o empresário e a todas as empresas, das grandes aos autônomos. Sem empresas que gerem postos de trabalho de qualidade, investimento e lucros, todo o resto não funciona. Há uma terceira tendência que ficou clara e é que em determinados âmbitos e setores estratégicos, como por exemplo, o da saúde, precisamos ser autossuficientes tanto no âmbito nacional como no âmbito europeu. Não se trata de rejeitar a globalização, e sim de preservar e usar o marco multilateral para garantir aos cidadãos que não caiamos no risco de desabastecimento de bens, ou que sejamos vulneráveis a abusos monopolísticos, como foi o caso do material sanitário, que ameaçam sua saúde ou seu bem-estar geral.

P. Que mudou na forma como enxerga seu trabalho?

R. Quando se fala dos bancos, eu sempre digo que somos pessoas. No Santander somos 200.000 pessoas, sendo 38.000 pessoas e suas famílias na Espanha, que estamos ajudando nossos clientes e também ajudando com as necessidades de nossas comunidades. Sempre fazemos isso, mas de maneira especial durante esta crise: esta é nossa missão, ajudar as pessoas e as empresas a progredirem. Nesta crise, além das iniciativas solidárias, o banco tem emprestado mais de um bilhão de euros (6,26 bilhões de reais) por dia a clientes que precisam. Estamos tramitando moratórias de seis milhões de clientes do grupo. Fizemos muitíssimas coisas e eu gosto de resumir dizendo que somos parte da solução. Temos que atender de maneira equitativa funcionários e clientes, e apoiar a sociedade. Quando surge um problema, temos que estar lá. E assim ofereceremos um retorno atrativo a nossos acionistas. Isto é ser um banco ou uma empresa responsável.

R. Qual está sendo sua prioridade no banco?

R. Nestas crises, é preciso saber o que é urgente e o que é importante, mas pode esperar. Para mim, o primeiro foi proteger todos nossos empregados, entendendo que os bancos, como se entendeu, é um serviço essencial e que devemos ter agências e serviços disponíveis. E, segundo, assegurar a continuidade do negócio, que no nosso caso é assegurar a solvência do balanço, a liquidez e prestar o melhor serviço a nossos clientes. A liquidez para a economia, tanto de pessoas como empresas, é essencial em uma crise aguda como a que estamos vivendo. Tem sido o meu foco e de toda a equipe do Banco Santander, na Espanha e no mundo.

P. Em que situação o Santander chega a esta crise?

R. O banco está em uma situação de grande fortaleza. O lucro líquido sem extraordinários duplicou de 2014 a 2019, temos 50% mais de capital, e vínhamos pagando ao acionista mais que o dobro de dividendos em espécie que cinco anos atrás.

P. O que se deveria fazer com a economia?

R. Assim como temos uma crise sanitária que ninguém em nossas vidas tinha visto, estamos, como consequência dela, perante uma crise econômica muito grave. E temos que atuar, em curto prazo, com um plano de choque que impulsione setores geradores de emprego; que considere as capacidades da nossa atual força de trabalho e, paralelamente, um plano de futuro em médio prazo, mais estratégico, para investir em áreas de crescimento, em digital, ciências da saúde, em tecnologia, na economia verde… É difícil transformar radicalmente a economia em meio a uma situação de emergência econômica e social, mas devemos encarar a recuperação já pensando na transformação necessária que devemos confrontar a seguir. Além disso, acredito que temos que nos esforçar para gerar emprego digno e manter níveis adequados de proteção social e gasto público prioritário. O crescimento só é sustentável se for inclusivo. E só apoiando o empresário, e as empresas, todo o resto é possível. Sem iniciativa privada, não há crescimento. É preciso criar as condições para que os investidores, de dentro e de fora, invistam e confiem em nosso futuro.

P. Que exemplos pode dar sobre as medidas necessárias?

R. Uma das iniciativas em que estamos trabalhando com especialistas e pessoas do setor imobiliário e de construção é, por exemplo, um plano de colaboração público-privada, concretamente com o ICO [Instituto de Crédito Oficial], para ajudar os jovens a comprarem sua primeira moradia. Nesse programa, o comprador pagaria apenas 5% do valor da casa, e o banco lhe daria a hipoteca de 95% com uma garantia do ICO de 20%. Só para dar um exemplo: se graças a este esquema de colaboração público-privada pudéssemos construir 150.000 moradias, estaríamos gerando 500.000 postos de trabalho e ajudando milhares de jovens a se tornarem independentes. Salvaria muitas pequenas e médias empresas e autônomos e reduziria a fatura do desemprego. Em curto prazo, temos que pensar também no turismo e na hotelaria. É preciso salvar o verão, porque assim estaremos ajudando muitas empresas a não desaparecerem e, com isso, que a saída desta crise seja mais rápida. Para isso, é preciso que internamente consigamos que a pandemia continue cedendo, e para isso precisamos fazer mais testes, um melhor uso dos dados e um monitoramento dos doentes e com quem mantiveram contato, e chegar a acordos internacionais para que gradualmente e com todas as garantias possamos ir abrindo as fronteiras.

P. A ênfase deve ser em apoiar as empresas ou os trabalhadores?

R. Se você apoiar as empresas, apoia os trabalhadores. Estamos em uma crise aguda. Temos que apoiar as empresas em tudo o que pudermos, porque, se lhes chegar liquidez suficiente, é muito mais provável que não fechem e gerem riqueza e emprego quando se superar a crise sanitária. Na Espanha havia 19 milhões de pessoas contribuindo com a previdência, e segundo o Plano de Estabilidade enviado a Bruxelas, há hoje seis milhões de pessoas que estão recebendo ajudas para fazer frente à situação. É o que era preciso fazer. Mas todos devemos estar conscientes de que o Estado de bem-estar não pode se pagar indefinidamente com dívida. É preciso pagá-lo recuperando os níveis de emprego que o tornam sustentável e justo, e para isso são necessárias mudanças estruturais que precisam ser feitas com amplos consensos para que sejam irreversíveis. No fundo, o que devemos entender é que o emprego privado é prioritário porque é o que permite sustentar o emprego público, a saúde, a educação...

P. É favorável a uma renda mínima?

R. Ficamos engalfinhados em discussões sobre os meios para chegar a um fim, e o que importa é que estejamos de acordo sobre os princípios. No que estamos de acordo é que é preciso apoiar as pessoas que necessitam. É preciso poder levar um dinheiro para casa durante o tempo necessário para passar a crise, isso é preciso fazer, e esse é o princípio com o qual todos temos que estar de acordo. E o outro é o princípio de que o justo é fomentar a empregabilidade duradoura. Cada um de nós tem uma responsabilidade individual além de coletiva. Como se faz isso? Depois poderemos debater.

P. É partidária de um acordo entre os partidos políticos?

R. Necessitamos de uma visão compartilhada sobre a Espanha do futuro, baseada em princípios muito claros e transparentes e com o apoio de uma ampla maioria da sociedade. O primeiro é que deve garantir a segurança jurídica e a estabilidade institucional. O segundo é que tem que ser não só compatível, mas também competitivo com a Europa. Um esquema fiscal que não permita manter e atrair os melhores empreendedores à Espanha para criar as empresas do futuro não vale. Na Espanha necessitamos de investimento, e o nacional não é suficiente. Sem investimento não há geração de emprego, nem sustentabilidade das finanças públicas. E o terceiro que precisamos é que haja uma cooperação leal com todos os grupos de interesse, setor público, setor privado, educação, sociedade civil… porque cada um de nós contribui em algo. O fundamental é gerar investimento, para gerar emprego, ao mesmo tempo em que não tenho dúvida de que não teremos crescimento sustentável sem crescimento inclusivo. E, para obtê-lo, necessitamos de emprego, emprego e emprego.

P. A desescalada está sendo bem executada?

R. O trabalho dos Governos é muito complicado. É fácil opinar de fora e dizer que poderia ter sido feito melhor, mas nem sempre se tem toda a informação. Nossa responsabilidade é apoiar em tudo o que for possível. A experiência internacional, avalizada por vozes tão autorizadas como as de Larry Summers e Bill Gates, nos mostra que, para a volta ao trabalho, é importante que haja um bom sistema digital, que respeite a privacidade, algo que é tecnologicamente possível com aplicativos para recolher e administrar os dados, que será preciso realizar um monitoramento das pessoas afetadas e dos contatos que tenham tido, fazer os testes em todos eles e, sendo o caso, submeter a quarentenas os que derem positivo. Todos temos que usar máscaras sempre que estivermos em público, respeitar os protocolos, agir com responsabilidade, e tudo isso para poder voltar à atividade o quanto antes.

P. Estão funcionando os avais do ICO?

R. O modelo de avais públicos está testado e funcionando bem em geral, mas também tem alguns problemas pontuais. O Santander tem uma quota total de crédito de 18%, mas em empresas é de 27%, e nos deram 18%. Se você é uma pequena empresa com três funcionários, você tem um banco e esse banco o conhece. Você não vai a um banco novo no meio da crise. Tivemos uma grande demanda e ainda não pudemos responder a todas as solicitações. Por isso é tão importante que liberem os 100 bilhões [de euros] o quanto antes. Os bancos e o Governo estamos colaborando de uma maneira muito positiva, embora talvez tivesse sido mais efetivo se os pedidos tivessem sido atendidos por ordem de chegada, como se fez outras vezes nas linhas do ICO e em países como a Alemanha, e não por um sistema de atribuição de quotas.

P. Os critérios de concessão de crédito estão sendo relaxados?

R. Temos uma responsabilidade com a sociedade e nossos acionistas que nos exige que concedamos os empréstimos com critérios de rigor e profissionalismo, e basta olhar a crise passada para saber os custos de não ser prudente. A garantia do ICO permite alcançar os elevados volumes de financiamento que estamos concedendo.

P. Há críticas a algumas práticas de bancos de refinanciar risco ou de exigir outros produtos ou condições para conceder os créditos com aval do ICO.

R. Nossa equipe tem instruções muito claras de fazer as coisas de maneira responsável, e estou segura de que assim se faz. Eu aspiro a que não cometamos nem um só erro. O setor está fazendo mais de 300.000 operações, e pode ser que haja alguma exceção, mas, honestamente, não se pode tomar a exceção como se fosse uma prática habitual.

P. Talvez esteja pesando a reputação que arrastam nos últimos anos.

R. Temos que ser empresas responsáveis para ganhar a confiança dos clientes. Venho insistindo muito nisso há cinco anos. Mudamos muito nestes anos, e como resultado desta crise a confiança vai ser ainda mais importante. Adotamos muitas medidas para ajudar tanto na emergência sanitária como aos nossos clientes afetados pela crise econômica, algo que eles reconhecem e valorizam. Mas não podemos ser complacentes. Sempre é preciso fazer mais, embora não possamos chegar a tudo. Fazendo as coisas de maneira responsável, nossos acionistas também serão recompensados. Espero que em outubro a situação sanitária e econômica global nos permita avaliar de novo o dividendo.

P. Esta crise pode acabar contagiando o sistema financeiro e provocar problemas de solvência?

R. Os Governos e os bancos centrais agiram de maneira muito rápida e relevante e estão apoiando a economia como devem apoiar. Acreditamos que seja muito importante que na Europa se lance o quanto antes um programa fiscal e regulatório comum de reativação, não só para acelerar a recuperação, mas também para preservar o Mercado Único e a concorrência, porque ambos podem ser afetados pelos espaços fiscais muito diferentes entre os países membros. Por exemplo, enquanto o programa de avais através do ICO equivale a 10% do PIB, o equiparável na Alemanha representa 30% do PIB alemão. Se esta assimetria de resposta não for compensada com regulação de concorrência e com um programa fiscal europeu, corre-se o risco de pôr as empresas espanholas em desvantagem. Não só pela quantia do programa, mas sim pelas díspares percentagens de garantia que há entre os programas. Na Espanha, nas linhas do ICO, os bancos, além de contribuirmos com a liquidez, assumimos entre 20% e 30% do risco.

P. A Europa está respondendo corretamente?

R. O Banco Central Europeu está defendendo de maneira decisiva o euro em geral e a Espanha e a Itália em particular. Estamos tendo solidariedade muito ampla, e tanto Christine Lagarde como Luis de Guindos disseram que, dentro de seu mandato, farão “todo o necessário”. Independentemente do BCE, a Europa tem que entender que solidariedade não é caridade, que beneficia a todos, enquanto que nós, os países, devemos entender que temos que ser responsáveis e fazer tudo o que for preciso para que as empresas viáveis sobrevivam. Para que a Europa nos apoie, as políticas de saída da crise têm que fomentar e atrair investimento, e as medidas têm que ser compatíveis com o crescimento inclusivo, a competitividade e a futura estabilidade das finanças. Na Europa temos um sistema que não é perfeito, mas não nos equivoquemos: é o melhor que o continente jamais teve e, embora tenhamos que melhorá-lo, é muito mais solidário que o americano. Temos que pôr a Europa ao nível dos EUA e China na economia digital. É um momento-chave para a Europa, porque jogamos nossa relevância no mundo e nosso modelo de sociedade.

P. Como se consegue isso?

R. Temos que estar conscientes de que não será fácil. Mas temos que nos pôr de acordo todos, não importa que seja de um partido ou de outro, e temos que contar com o setor privado, com o mundo universitário, e investir mais em educação. Também necessitamos de Governos responsáveis, na Europa e nos países, que entendam que, se não se apoiar as empresas, se não se gerarem lucros empresariais, não podemos ter uma economia social. Estamos em um momento disruptivo em que há grandes ganhadores e perdedores, e quase todos os grandes ganhadores estão fora da Europa, nos EUA e na China. Precisamos fazer muitas coisas para que entre eles também apareçam as grandes empresas europeias. Mas se fizermos isso bem, não renuncio a ver entre os ganhadores empresas como o Santander e a Telefónica.

P. Estão funcionando as novas formas de comunicação com a equipe, como o Ask Ana?

R. Agora é importante estarmos muito perto dos empregados. Começamos pouco depois do confinamento. Todas as perguntas estão relacionadas com como será o retorno, o teletrabalho, a segurança física das pessoas quando voltarem. Há muita ansiedade, e é fundamental que todos nós passemos confiança às pessoas. Para que possamos, assim que possível, voltar. Com máscaras e distanciamento e responsabilidade, mas sair.

P. Essa tendência ao teletrabalho veio para ficar?

R. Haverá uma mudança estrutural em nossa forma de nos organizarmos, de comercializar produtos, de trabalhar, e tudo tem um denominador comum, que é um uso intensivo das capacidades digitais. A crise acelerou a revolução digital. Sem digitalização, as consequências teriam sido muito piores, mas é preciso assegurar que chegue a todo mundo. Fizemos pesquisas e há pessoas que acham mais difícil conciliar a vida pessoal e profissional quando se está em casa. Teletrabalhar é bom até certo ponto. A maioria dos profissionais do banco nos pede para poder combinar dois ou três dias de trabalho em casa.

El País



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