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Alagoas
11/05/2020 00:00:00

Escassez de leitos leva equipes da saúde a reformular critérios para decidir quem vai ocupar UTI

Falta de transparência e de padronização no País, além de risco de discriminação, preocupam presidente da Comissão de Bioética da OAB.


Escassez de leitos leva equipes da saúde a reformular critérios para decidir quem vai ocupar UTI

Com o agravamento da pandemia do novo coronavírus no Brasil em um cenário de escassez de recursos nos hospitais, profissionais de saúde têm redefinido critérios para decidir quais pacientes serão internados em UTIs (unidades de tratamento intensivo). Segundo o Ministério da Saúde, há 33.905 leitos de UTI no País, sendo 15.754 do SUS (sistema único de saúde) e 18.151 fora. Não há dados públicos nacionais de taxa de ocupação de nenhum dos dois setores, mas secretarias estaduais e municipais têm informado que cidades como Manaus e Rio de Janeiro já atingiram o limite.

Sem a adoção de uma fila única, que aprimore como as centrais de gestão de leitos atuam, de maneira a articular o SUS como a saúde suplementar, equipes têm criado uma escala de prioridades de pacientes. A referência legal no Brasil sobre o tema hoje é a resolução 2.156, de 2016, do Conselho Federal de Medicina (CFM). Por ser ampla, a norma tem sido adaptada para os atingidos pela covid-19. De modo geral, as recomendações seguem dois nortes: o estado clínico do paciente e o grau de funcionalidade, com o objetivo de avaliar o quanto a pessoa conseguiria “aproveitar a vida” após a internação. 

Protocolo proposto por 4 instituições de saúde prevê um sistema de pontuação baseada em múltiplos critérios, “que representam diferentes objetivos éticos: salvar o maior número de vidas; salvar o maior número de anos/vida; e equalizar as oportunidades de passagem pelos diferentes ciclos da vida”. “Quanto menor é a pontuação de um paciente, maior será a sua prioridade de alocação de recursos escassos”, diz o texto elaborado pela AMIB (Associação de Medicina Intensiva Brasileira), Abramede (Associação Brasileira de Medicina de Emergência, SBGG (Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia) e ANCP (Academia Nacional de Cuidados Paliativos).

O sistema de pontuação da primeira parte da triagem tem como base um método usado internacionalmente chamado SOFA [sequential organ failure assessment score], que busca avaliar as funções orgânicas, como oxigenação do sangue, se os rins estão funcionando e a pressão arterial do paciente. Uma segunda etapa do protocolo prevê que seja considerado como critério pessoa com “comorbidades graves, com expectativa de sobrevida menor que um ano”. O documento não inclui um limite de idade, como foi adotado na Itália.

O SOFA também foi usado no manual elaborado pelo Comitê de Ética Hospitalar do Hospital de Clínicas da Unicamp, junto com a equipe de cuidados paliativos, de terapia intensiva, da emergência e da área jurídica. 

De acordo com Flávio César de Sá, professor do departamento de saúde coletiva na área de ética e saúde da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, é possível avaliar o estado clínico do paciente nesse método com exames simples, que levam cerca de uma hora para serem feitos em um hospital de grande porte. “Essa escolha não é entre quem vai viver e quem vai morrer. É entre quem vai para UTI e quem não vai. Quem não vai para UTI também vai ser cuidado, vai ser atendido, mas não vai receber o mesmo recurso”, afirmou ao HuffPost Brasil.

As unidades de tratamento intensivo são o melhor ambiente dentro de um hospital para atender a pacientes que precisam de respiradores. A maioria das mortes causadas pela covid-19 são por complicações pulmonares. “A pneumonia causada pela covid-19 tem um fenômeno muito frequentemente associado que chama trombogênese. O processo inflamatório é de tal ordem que dizemos que o paciente é tomado por uma tempestade imunológica, pela liberação de muitas substâncias chamadas citocina. Esse paciente sofre uma certa anarquia no sistema imune dele”, afirmou a pneumologista da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz Margareth Dalcolmo, em entrevista ao HuffPost Brasil.

Para Flávio César de Sá, é necessário que cada hospital adote um protocolo para dar segurança às equipes e tirar o peso de quem está na linha de frente. “A equipe se sente respaldada pela instituição. Não é uma decisão da cabeça dele [profissional]. É uma decisão que tem fundamento institucional, foi discutido por mais pessoas, a instituição está de acordo. Se não, vai gerar muita insegurança na hora de tomar uma decisão”, afirma. Ele também defende que a avaliação seja feita por uma equipe específica que não seja a de intensivistas. “Muito difícil o profissional cuidar de um paciente sabendo que deixou de cuidar de outro”, explica.

O professor que trabalhou por 26 anos em pronto-socorro afirma que os critérios são recomendações, mas que é possível que na hora de tomar a decisão “circunstâncias que não foram previstas interfiram” e que a escolha final é do profissional. “É sempre uma escolha emocionalmente muito difícil na linha de frente. Ter que escolher quem vai para UTI ou não não é novidade na vida de quem trabalha com emergência no Brasil, mas agora está pior porque vai ter bastante gente precisando e pouca disponibilidade de leitos.”

Ter que escolher que vai para UTI ou não não é novidade na vida de quem trabalha com emergência no Brasil, mas agora está pior porque vai ter bastante gente precisando e pouca disponibilidade de leitos.Flávio de Sá , da Unicamp

Além dos critérios orgânicos, outro fator incluído nos protocolos é quando o paciente já expressou anteriormente que não quer alguns tipos de intervenção, como ser mantido em respirador, por meio de uma diretriz antecipada de vontade ou de um testamento vital. Para ser válida, essa manifestação precisa ser feita em um momento em que a pessoa está plenamente capaz de tomar decisões.

De acordo com o professor da Unicamp, contudo, a imensa maioria dos pacientes, quando chega a precisar de uma UTI, não pensou sobre o tema. “Como a nossa sociedade não fala de morte normalmente, quando chega agora que a gente está confrontado com uma situação de proximidade maior da morte, a gente está despreparado. A gente é pego de calça curta”, afirma.

Protocolos regionais 

Além da proposta das associações e a da Unicamp, há outras iniciativas locais. O Cremerj (Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro) aprovou nesta semana critérios de prioridades na terapia intensiva. O documento, contudo, não foi divulgado. Em nota enviada ao HuffPost Brasil, o conselho afirmou que “o documento é de autoria da Secretaria de Estado de Saúde do RJ. Não temos autorização para compartilhar”.

Também em nota, a Secretaria de Saúde do Rio afirmou que “a validação do documento depende da publicação em Diário Oficial, ainda sem data”. De acordo com a pasta, o modelo estabelece, além de análise em protocolos que estão sendo utilizados em países como Espanha e Estados Unidos, critérios para orientar profissionais de saúde”.

De acordo com a secretaria, além do Cremerj, a discussão envolveu a  Academia Nacional de Cuidados Paliativos - Regional Rio de Janeiro, a Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia - Seção Rio de Janeiro, a Sociedade de Terapia Intensiva do Rio de Janeiro (SOTIERJ) e a Universidade Federal Fluminense (UFF).

Para o presidente da Comissão Especial de Bioética e Biodireito da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Henderson Fürst, a falta de transparência é um dos aspectos preocupantes nessas iniciativas. “São coisas que ficam parece que só em grupo do Whatsapp, não sai publicamente”, afirmou ao HuffPost Brasil. 

Os outros especialistas também são unânimes em defender que esse tipo de documento seja público e esteja disponível, por exemplo, no site do hospital. Outra unanimidade é que a equipe responsável pela triagem faça uma comunicação clara e respeitosa com a família. A OMS (Organização Mundial de Saúde) também recomenda a transparência como critério fundamental para todas as decisões tomadas para enfrentar a pandemia.

A falta de um documento nacional é outra preocupação apontada por Fürst. “Se cada estado, por meio de um conselho regional, for adotar uma orientação, imagina que o paciente vai ter direcionamentos diferentes se estiver, por exemplo, em Pernambuco, Rio de Janeiro, São Paulo ou Brasília. Não faz sentido nós termos essa regionalização de critérios”, disse. O jurista acredita que uma solução seria o CFM elaborar uma resolução específica sobre o tema voltada para o cenário da atual crise sanitária. Países europeus adotaram um padrão nacional.

Apesar de dizer que “em um país continental e heterogêneo como o Brasil, há idiossincrasias locais que são difíceis de ignorar e que, porventura, exijam uma postura que fuja à regra de grandes centros”, o diretor-executivo do Instituto Questão de Ciência, Paulo Almeida, também defende a centralização de critérios. De acordo com ele, um padrão único de referência “garante isonomia e, inclusive, segurança jurídica para que profissionais ajam sem o risco de sofrerem sanções profissionais e/ou criminais”.

Sobre as implicações jurídicas, Henderson Fürst também questiona critérios que possam ferir a Constituição ou legislações como o Estatuto do Idoso ou o Estatuto da Pessoa com Deficiência. “Todas [propostas] tentam ressaltar que não estão colocando critério etário, desprivilegiando idosos ou pessoas com doenças crônicas, mas quando você vai ver formas usadas, no sistema de pontuação, idosos com idade avançadas e pessoas com com doenças crônicas são mais afetadas sim”, afirma. “O que me preocupa nessas recomendações é que elas têm potencial de ilegalidade ou inconstitucionalidade”, completa.

Escolhas morais 

Os debates sobre escolhas morais na saúde são recorrentes. Na década de 1960, quando surgiram os equipamentos de hemodiálise nos Estados Unidos, a cidade de Seattle criou o chamado “comitê divino”. O grupo, composto por  pessoas da sociedade, como padres, banqueiros e donas de casa, usava como critérios para atendimento médico se a pessoa frequentava a igreja, era assíduo no emprego, era casada ou tinha filhos, por exemplo.

Usado em 1967 pela filósofa Philippa Foot, o chamado “dilema do bonde” é relembrado diante da necessidade de decisões impostas pelo novo coronavírus. “Ficamos em uma versão muito cruel dilema do bonde, onde qualquer saída envolve, inevitavelmente, sacrifícios”, afirma Almeida, do Instituto Questão de Ciência. No experimento filosófico, um bonde não pode ser parado e há 5 pessoas amarradas na pista. É possível, contudo, apertar um botão para mudar o rumo do veículo, de modo que ele sacrifique apenas uma pessoa. 

Ficamos em uma versão muito cruel dilema do bonde, onde qualquer saída envolve, inevitavelmente, sacrifícios.Paulo Almeida, do Instituto Questão de Ciência

De acordo com o especialista tanto adeptos do utilitarismo - visão que entende que a moralidade é determinada pela consequência dos atos - quanto uma abordagem deontológica - em que a moralidade é determinada pelo ato em si, apontam para o entendimento de que, numa situação de escassez de recursos, devem ser estabelecidos critérios. “Segundo Anders Sandberg, filósofo vinculado à Universidade de Oxford, o argumento de justiça, segundo o qual cada pessoa deveria ter uma chance igual de atendimento de saúde, não se sustenta se essa opção é impossível”, afirma Almeida.

Na prática, fatores sociais têm determinado o perfil de vítimas da covid-19 no Brasil. Isso acontece tanto devido ao acesso limitado ao sistema de saúde quanto por limitações para cumprir o distanciamento social, como um casas em que várias pessoas dividem o mesmo cômodo. 

Lacunas em programas sociais, como o auxílio emergencial, também contribuem para que a desigualdade social influencie na mortalidade. A taxa de informalidade no Brasil chega a 40,7% da população ocupada, representando um contingente de 38,3 milhões de trabalhadores, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) divulgada no último 28 de fevereiro pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Para o presidente da Comissão de Bioética da OAB, o dinheiro como critério definidor da vida é uma “tragédia em termos de bioética”. “Isso fere valores de humanidade que são universais. Isso fere a crença da humanidade na Justiça. Isso fere a crença de que somos todos iguais, temos o mesmo valor e que não há uma vida humana com mais valor do que a outra. Em termos de bioética, é uma tragédia que isso aconteça”, disse.

https://www.huffpostbrasil.com/



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