26/04/2024 10:17:48

Justiça
07/03/2020 00:00:00

Mais de 6,8 mil processos de violência doméstica tramitam no TJ

Representante da OAB lamenta falta de políticas públicas voltadas ao combate à violência contra as mulheres


Mais de 6,8 mil processos de violência doméstica tramitam no TJ

Uma mulher de 39 anos que perdeu o emprego, a liberdade, a paz e teve de deixar a cidade onde morava para não apanhar de novo ou morrer. Ela é vítima, mas vive escondida como se fosse uma criminosa. Tenta superar o que aconteceu há quase três anos, quando foi estuprada e espancada pelo ex-namorado que não aceitava o fim do relacionamento. Dados oficiais – do Tribunal de Justiça e dos órgãos de segurança – apontam o crescente número de agressões e assassinatos de mulheres em Alagoas.

Alagoas desponta com um dos estados mais violentos do Brasil, situação agravada pela falta de políticas públicas direcionadas às vítimas. Estatística do Tribunal de Justiça revela números preocupantes – no mês dedicado às mulheres – mais de 6,8 mil processos de violência doméstica estão em tramitação no TJ. Em 2018, foram mais de 1,5 mil casos novos de agressão, saltando para 1,9 mil no ano passado e, somente nos dois primeiros meses de 2020, já são quase 300 relatos de mulheres.

Já as delegacias de Defesa dos Direitos da Mulher – duas em Maceió e uma em Arapiraca – registraram nos dois primeiros meses deste ano, 160 casos que vão desde a importunação sexual a tentativas de homicídio. Em 2019, foram quase 1,2 vítimas de todos tipos de agressão.

Segundo estatística da Secretaria de Segurança Pública (SSP), de janeiro de 2019 a janeiro de 2020, quase cinquenta ocorrências de feminicídio em Alagoas. Em todo ano de 2018 foram vinte ocorrências desse tipo de crime e somente no carnaval de 2020 aconteceram 141 casos de violência contra mulheres em Alagoas.

No último dia 4, o G1 apresentou levantamento detalhado – dados do Monitor da Violência – sobre o feminicídio em 2019. O Brasil registrou aumento de 7,3% em relação a 2018, com 1.314 vítimas assassinadas em razão do gênero, com média de um caso a cada sete horas. Alagoas aparece como o estado mais violento, com taxa 2,5 a cada 100 mil, acompanhado do Acre, bem acima da média nacional de 1,2.

CENÁRIO DE DESATENÇÃO É PREOCUPANTE, DIZ OAB

“Como maiores desafios no tocante aos direitos das mulheres, entendo ser a efetividade das leis por meio de políticas públicas que deveriam ser implementadas pelo Estado de forma mais ampla, bem como um reconhecimento maior de gestores e da própria sociedade em relação a importância do respeito a esses direitos. A luta por igualdade não é apenas uma bandeira ideológica, mas sim um compromisso real com o progresso e melhora nas condições de vida de toda população, sejam mulheres ou homens, pois o machismo mata a ambos”, afirma Anne Caroline Fidelis, presidente da Comissão Especial da Mulher e da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, seccional Alagoas (OAB/AL).

Na avaliação de Anne Caroline, em Alagoas, infelizmente, ainda há um cenário preocupante de desatenção e falta de priorização das políticas voltadas à igualdade de gênero e combate à violência contra as mulheres. “Temos uma rede frágil, com poucos postos de atendimento especializados, a exemplo das únicas três delegacias das mulheres presentes em todo o estado de Alagoas, que sequer funcionam nos finais de semana ou mesmo nos períodos noturnos. Além disso não contamos com casas de passagem para mulheres vítimas de violência e nem uma casa abrigo estadual. Temos, ainda, apenas dois juizados da violência doméstica e familiar. Seria estratégica a ampliação e a qualificação dessa rede, bem como a adoção de políticas transversais que dialogassem com a educação, saúde e trabalho”, conta a advogada.

“Vale ressaltar que felizmente grandes iniciativas vão de encontro a esta maré de dificuldades, a exemplo da Patrulha Maria da Penha que desde 2019 salva a vida de muitas mulheres vítimas do machismo, e o Programa Tem Saída implementado pela OAB em parceria com diversas instituições públicas e privadas que, por sua vez, visa a profissionalização e inserção no mercado de trabalho de mulheres vulnerabilizadas e vítimas de violência em todo o estado”, acrescenta Anne Caroline.

VÍTIMA FOI ESPANCADA E ESTUPRADA POR EX-NAMORADO

No dia 2 de abril de 2017, um domingo, Maria (nome fictício) foi agredida pelo ex-namorado, que não aceitava o término do relacionamento e passou a ameaçá-la. “Cinco meses após a gente acabar, ele me pegou na porta de casa, me jogou para dentro, me espancou por mais de quatro horas e me estuprou. O namoro durou só quatro meses. Tem homem que trata a pessoa como se fosse um objeto. Com dois meses de namoro ele começou a mostrar quem era ele, se tornando agressivo. Mas jamais imaginei que ele chegaria ao ponto que ele chegou. Me ligava dezoito, vinte vezes, me ameaçava e dizia que se eu não fosse dele não seria de homem nenhum. Eu pensava que ele falava isso só pra fazer eu voltar. Na cabeça dele eu tinha alguém”, recorda Maria.

Mãe de uma adolescente, ela tenta retomar a vida, mas ainda teme reencontrar o ex-namorado. Anos depois ainda lembra do quanto peregrinou até conseguir colocar seu agressor na prisão.“A agressão foi no interior, onde ele é muito conhecido, então eu resolvi não denunciar na delegacia da cidade (Colônia Leopoldina). Vim para Maceió. Tirei foto da casa que ficou ensaguentada, do meu corpo. Ele arrancou meus cabelos. Revelei as fotos e fui na delegacia da mulher. Não denunciei no mesmo dia porque fiquei com medo. Mas eu pensei: isso não pode ficar impune”, explica a vítima, que hoje vive em Maceió.

Segundo Maria, um dos momentos mais difíceis quando teve de provar que houve estupro. “Na delegacia foi horrível. Quando fui denunciar, a delegada não estava e a policial assinou e esqueceu de colocar a solicitação de conjunção carnal, então o meu estupro só foi aceito porque o agressor caiu em contradição. O médico-legista se negou a fazer o exame porque não tinha solicitação da polícia, mas ele não deveria ter se negado. Isso só descobri depois. Fiz só de corpo de delito, mas o juiz acatou que houve estupro”, lembra.

O agressor foi preso, mas ficou menos de três meses atrás das grades, segundo a vítima. “A alegação é que ele não representava risco à sociedade. Então eu pergunto: e eu não faço parte da sociedade não? Não dá pra entender. Você vira só mais um caso na estatística. Para mim ele ainda é uma ameaça, porque eu que vivo me escondendo. Abandonei emprego, abandonei família, saí fugida. Ele sai, vai à festa. Até hoje tenho medo. Isso me dá pânico, me dá revolta. Muita humilhação, muito constrangimento. Tenho depressão. Preciso de um emprego, porque o que eu tinha abandonei quando fui agredida e quero justiça. O estado não dá estrutura para a vítima, o poder público é muito falho”, lamenta.

QUEM VAI AJUDAR ESSA MULHER A SE REERGUER, QUESTIONA ADVOGADA

 

Foto: Divulgação

 

 

A advogada Paula Simony Lopes é coordenadora do Centro de Defesa dos Direitos da Mulher (CDDM), entidade que acolhe vítimas da violência e avalia que não houve avanço nas políticas públicas em Alagoas. “Continuamos tendo apenas as delegacias nos bairros Salvador Lyra e no Centro, em Maceió, e também a de Arapiraca. O serviço triplicou, a violência aumentou e a estrutura de atendimento não melhorou. Depois que denuncia, a vítima vai para onde? Quem vai ajudar essa mulher a se reerguer?”, questiona Paula Simony.

“Se for vítima e morar no interior, vai morrer lá mesmo, principalmente se for uma cidade pequena. Apenas o abrigo Viva Vida, em Maceió, acolhe vítimas. Se for observar os órgãos de proteção à mulher são mínimos. Não tem serviço de atendimento e aqui a gente tem 102 municípios e praticamente nenhum serviço de atendimento. A Patrulha Maria da Penha é um instrumento importante, mas é repressor, pós-violência, fazendo com que o agressor não se aproxime da vítima. Só que a gente não tem política pública aplicada para prevenir a violência ou serviço de encaminhamento para amparar a mulher que muito provavelmente volta para o agressor porque não tem renda e é dependente emocionalmente. Quando a gente fala de politicas públicas a gente fala de todos os instrumentos da rede funcionando e a gente sabe que muitos são precários”, explica a coordenadora do Centro de Defesa dos Diretos da Mulher (CDDM).

A advogada lamenta que não há amparo às vítimas e que também é preciso cuidar do homem, o agressor. “Segundo as estatísticas, o homem que comete a violência vai cometer com, pelo menos, mais cinco mulheres e não tem esse trabalho em Alagoas de cuidar do agressor. Tudo isso tem na própria Lei Maria da Penha. É preciso trabalhar a prevenção, o homem e a mulher após violência. Às vezes a gente sente como se o governador não estivesse ouvindo a nossa voz, como se a gente não tivesse falando. Falta sensibilidade”, lamenta Paula Simony.

ACOLHIMENTO DE VÍTIMAS

O Serviço de Acolhimento para Mulheres Vítimas da Violência Doméstica (Abrigo Viva Vida) da Secretaria de Assistência Social de Maceió (Semas) acompanha mulheres com ou sem filhos em situação de risco de morte ou ameaças. “É um serviço de proteção, assistência e combate à violência doméstica (física, sexual, psicológica, dano moral e/ou patrimonial e tráfico de mulheres). É de caráter sigiloso e temporário (emergencial ou provisório), onde as usuárias poderão permanecer até reunir condições necessárias para retomar o curso de suas vidas”, explica a assessoria da Semas.

No período de janeiro a dezembro de 2019, o abrigo acolheu trinta mulheres. Para acesso ao serviço, segundo a secretaria, é necessária a formalização da ocorrência através de instrumento legal específico como o Boletim de Ocorrência (BO), junto a Delegacia Especializada de Defesa dos Direitos da Mulher, encaminhamento do Centro de Referência de Atendimento a Mulher (CEAM) ou Centro de Referências Especializado de Assistência Social (CREAS) e/ou outro órgão que atue na Defesa dos Direitos da Mulher Vítima de Violência.

A Secretaria de Estado da Mulher e dos Direitos Humanos (Semudh) apresentou medidas desenvolvidas em 2019 como o fortalecimento da Rede de Enfrentamento a Violência contra a Mulher. “A Semudh desenvolveu o Plano Estadual de Políticas para Mulheres, que é uma iniciativa do Estado de Alagoas para atender às demandas apresentadas pelo Cedim (Conselho Estadual dos Direitos da Mulher de Alagoas), como também pelo conjunto de movimentos de mulheres, movimentos feministas e organizações da sociedade civil, imprimindo às suas necessidades o caráter de Política Pública de Estado, visto que os impactos das ações desenvolvidas para as mulheres durante décadas, muitas vezes, foram descontinuadas por terem tido apenas o caráter de gestão temporária”, informou a Semudh.

Gazeta de Alagoas



Enquete
Na Eleição de outubro, você votaria nos candidatos da situação ou da oposição?
Total de votos: 44
Notícias Agora
Google News