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Saúde
20/01/2020 23:00:00

Alagoas tem 70 transgêneros à espera de cirurgia de mudança de sexo

Dados estimados são do Grupo Gay de Alagoas (GGAL), que critica falta de centro de referência


Alagoas tem 70 transgêneros à espera de cirurgia de mudança de sexo

Mais empatia e tolerância. O pedido é de Alessandra Santos, mulher alagoana transexual que conta que, desde criança, se sentia diferente e ninguém lhe ensinou a ser da maneira como ela se aceita hoje. Mesmo aos 36 anos de idade, a batalha pela afirmação do gênero continua. Ela é um dos 70 transgêneros de Alagoas - segundo dados estimados pelo Grupo Gay de Alagoas  (GGAL) - que ainda lutam para realizar o grande sonho da existência: a cirurgia de redesignação sexual.

E este desejo, agora, pode ser antecipado mais um pouco, já que, por força de resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), divulgada no começo de 2020, a realização de procedimentos cirúrgicos de afirmação de gênero pode acontecer a partir dos 18 anos (e não mais após o cidadão completar 21). A hormonioterapia cruzada já pode ser administrada em pacientes trans a partir dos 16 anos, ou até antes, em caso de puberdade precoce ou estágio puberal antes dos 8 anos no sexo feminino e antes dos 9, no sexo masculino.

É fato que, ao longo dos anos, e até Alessandra reconhece, as conquistas pelo público LGBT são relevantes, mas as dificuldades não acabaram. Aqui no Estado, por exemplo, não há um centro de referência hospitalar para se fazer o procedimento cirúrgico de transição sexual. E não por falta de cobrança por parte dos pacientes ou dos profissionais de Saúde. Mesmo assim, mais de 100 alagoanos já conseguiram a mudança do sexo, obviamente que em outras partes do País.

A trans ouvida pela reportagem conta que tenta a redesignação sexual desde 2010. Buscou até o direito por meio da Justiça, mas só encontrou obstáculos que pareciam intransponíveis. Determinada, não desistiu da batalha. Por conta própria, fez inúmeras ligações e enviou diversos e-mails aos hospitais que já faziam o procedimento em outras localidades. Um deles atendeu ao apelo, o Hospital das Clínicas de Recife.

“Fui lá e estou em acompanhamento psicológico e hormonal de 2015 até hoje. Me desloco todos os meses até o HC de Recife. A equipe é maravilhosa, talvez a melhor do País. Minha cirurgia foi marcada para o ano passado, mas não pude fazer por problemas pessoais. Foi remarcada para este ano e, se Deus quiser, dará tudo certo”, acredita.

Alessandra diz que a vivência na nova identidade a credencia a fazer a cirurgia sem a mínima possibilidade de arrependimento. Ela garante estar segura deste objetivo e crê que se sentirá plena quando conquistá-lo. E, analisando o passado, confirma que nunca se sentiu um homem.

“Não gostava de brincadeiras de meninos e também não gostava de brincar com eles. Evitava ao máximo nos tempos de escola fazer esportes, porque teria que me inserir nesse meio masculino. Ainda quando criança e no meio escolar, eu me apaixonava pelos meus coleguinhas e professores. Em casa, vestia e usava os sapatos da minha tia, tudo isso sem ela saber. Sabia que ser do jeito que sou era errado, sempre ouvia isso, mas não sabia o motivo, então procurava não demonstrar que eu me sentia atraída pelos meninos”, relata.

Apesar do sofrimento para autoaceitação, ela superou os tabus e afirma que tem enfrentado o mundo de cabeça erguida. Formada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal), ela comenta que no ambiente acadêmico encontrou um local sem preconceitos explícitos, embora tenha enfrentado resistência de uma das professoras, que se recusava a chamá-la pelo nome social. A dificuldade foi logo superada.

“Hoje em dia, eu não enfrento dificuldades, talvez por ser passável (termo usado para transex que não têm traços masculinos e se passam por mulher cisgênero). Minha voz é grossa e, quando falo, causa um certo espanto. A dificuldade é apenas por telefone por relacionarem a minha voz com alguém do sexo masculino. Mas, no geral, não sofro dificuldades por ser trans”, destaca.

Porém, no contexto mais amplo, ela fala que o preconceito é presente na sociedade, além da violência. Acabar com estes males seria o grande desafio da atualidade. “Temos até lei que criminaliza a transfobia. É comum também vermos novelas, seriados e documentários que abordam a temática, mas, em contrapartida, a violência aumentou e os assassinatos são corriqueiros. É importante que esse trabalho de desconstrução do ódio e do preconceito, feito pela mídia, em prol dos LGBTs, continue". 

Ela também faz um apelo aos intolerantes e preconceituosos. “Que possam ver que somos todos iguais e que não cabe a eles julgar o que é certo ou errado. Que somos unidos, como foi mostrado no caso do Pátio Shopping, afinal de contas, mexeu com uma, mexeu com todas”.

GGAL CRITICA ACOMPANHAMENTO

O presidente do Grupo Gay, Nildo Correia, classifica como péssimo o acompanhamento a transgêneros que desejam fazer a cirurgia de transição. Segundo ele, a quantidade de pessoas já redesignadas sexualmente poderia ser muito maior em Alagoas se este procedimento fosse feito aqui e se a burocracia não atrapalhasse os processos. 

“É um descaso total, uma verdadeira falta à humanização deste serviço de aconselhamento. Até que foi iniciado recententemente o ambulatório trans no Hospital da Mulher, mas já chegaram denúncias de falta de atendimento adequado. O Hospital Universitário também divulgou a retomada e abertura do ambulatório de lá. Torço e espero que avance, pois foi um fiasco a primeira tentativa, quando houve até denúncia de diagnóstico dado pelo olhar a esses assistidos,  como se a transexualidade estivesse ligada à feminilidade ou à masculinidade física”, ressaltou.

Nildo se referia ao espaço criado no Hospital Universitário Prof. Alberto Antunes (HUPAA) para atendimento exclusivo do público trans, reinaugurado na última quinta-feira (16), com a proposta de oportunizar ao gestor e aos profissionais a importância de compreender a urgente necessidade de uma assistência digna às pessoas trans.

De acordo com o HU, o ambulatório para o público trans segue a portaria Nº 1707/2008 que regulamenta o processo de mudança de sexo. A norma estabelece a realização do procedimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS), mas não define critérios para a execução da cirurgia e de outros tratamentos voltados para travestis e transexuais.

Conforme anunciado, as atividades do Ambulatório Trans do HUPAA serão realizadas de forma multidisciplinar e interprofissional, envolvendo docentes e discentes da Ufal das áreas de Endocrinologia, Psiquiatria, Psicologia, Ginecologia, Cirurgia Plástica, Enfermagem e Serviço Social, atendendo pacientes do Hospital da Mulher, Unidade Docente Assistencial (UDA) e Unidades Básicas de Saúde (UBS) dos bairros Benedito Bentes e Graciliano Ramos.

Por outro lado, Nildo completa que a morosidade e a complicação no instante de se iniciar o acompanhamento fazem com que muitos trans desistam de tentar ou optem por fazer o procedimento cirúrgico no serviço particular ou até mesmo fora do país (os que têm condições financeiras para tal.

Ele diz lamentar a falta de um programa específico, no Estado, que permitisse a cirurgia. E lembra, como exemplo da dificuldade enfrentada pelos alagoanos, o caso do homem trans Gael de Alcântara Lima, de 25 anos, que usou as redes sociais para fazer um apelo e conseguir a tão sonhada mastectomia masculinizadora (que extrai as mamas completamente).

"Em seu breve relato de busca de ajuda para realizar a cirurgia de mastectomia masculinizadora, há trechos que doem  na alma, a exemplo dos que falam em dor, alcançar o fim de muitos machucados físicos e psicológico e liberdade de ser o que é", destaca Nildo Correia.

Segundo ele, no Brasil, a Saúde ainda é muito frágil e não consegue oportunizar à comunidade trans a aquisição do tratamento hormonal, mastectomia mamária ou cirurgia de readequação de gênero. O presidente do GGAL explica que os homens trans precisam fazer, em algum momento da vida, a mastectomia masculinizadora, tanto para o bem-estar mental quanto físico.

DÚVIDAS SOBRE HORMONIOTERAPIA

As principais dúvidas das pessoas trans que procuram o consultório da médica ginecologista, sexóloga e psicóloga Chris Cavalcante se referem à hormonioterapia e em como lidar com as questões relacionadas ao processo de aceitação familiar, que é, dentre os aspectos emocionais, o mais relevante, segundo a especialista.

Ela informa que nem todos os transgêneros desejam fazer a cirurgia de redesignação sexual, mesmo tendo plena convicção da transexualidade. No caso das mulheres trans, há uma procura maior, no acompanhamento, para a construção da neovagina, além de outros procedimentos cirúrgicos, todos para melhor adequarem à nova imagem corporal. Por outro lado, os homens trans optam por vários procedimentos cirúrgicos, principalmente a mastectomia, já que a faloplastia ainda é uma cirurgia experimental, diferente da neovagina.

“Tenho clientes, mulheres trans, que fizeram a cirurgia no Brasil como também na Tailândia. Na minha experiência clínica, tanto como ginecologista como psicóloga e sexóloga, elas ficaram imensamente satisfeitas com o procedimento executado, assim como existem outras mulheres que não desejam realizá-la e estão satisfeitas da mesma forma com outras cirurgias que fizeram e que as deixam em sintonia com a sua imagem corporal feminina e sua identidade”, evidencia.

Chris Cavalcante considera de extrema importância o acompanhamento destes clientes por equipes multiprofissionais. Para ela, a assistência precisa ser de qualidade para que estas pessoas possam ter uma transição  sexual adequada e segura. “O acompanhamento feito pelo SUS é um compromisso social, de imensa relevância, afinal de contas, estas condutas são muito dispendiosas e muitos trans não têm condições de realizá-las. Além disso, vai permitir que estas pessoas alcancem os seus objetivos”.

No dia a dia, a médica e psicóloga diz que recebe transgêneros para consultas e busca seguir protocolos baseados na fase em que o cliente se encontra. E explica que o acompanhamento deve atender às demandas específicas, principalmente relacionadas à hormonioterapia e exames clínicas e laboratoriais.

Nas conversas, revela que muitos tabus são expostos. “Nascer preso a um corpo físico incongruente com a sua identidade sexual é um dos maiores sofrimentos humanos. E as maiores frustrações de quem não se aceita da forma como nasceu é o não conhecimento, apoio e empatia das pessoas, sobretudo dentro da própria família, onde ocorre a maior dor”.

Ela completa que, como profissional da saúde física e mental e principalmente como pessoa, faz um grande apelo para que as pessoas julguem menos e aceitem mais. “Afinal de contas, os trans não estão agredindo ninguém, apenas buscam o direito de adequarem o seu corpo, seja de forma funcional ou estética, à sua alma. E isto é simplesmente libertador. Podemos construir uma sociedade menos hipócrita e mais inclusiva, se tivermos como real propósito de vida a felicidade”. 

CREMAL ENDOSSA E ATÉ ELOGIA NOVAS REGRAS

As principais mudanças que disciplinam o cuidado à pessoa com incongruência de gênero foram aprovadas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) em setembro do ano passado. O colegiado se reuniu e percebeu a necessidade de atualizar uma resolução publicada há quase dez anos. Presidente do Conselho Regional de Medicina em Alagoas (Cremal), Fernando Pedrosa diz que não participou da discussão nacional, mas que aprova as novas regras.

Ele admite que o conselho tinha que intervir diante das mudanças na legislação vigente e das conquistas da pessoa trans. Pedrosa diz que até pouco tempo atrás a cirurgia de mudança de sexo era considerada experimental, não poderia ser cobrada e somente era realizada nas universidades, com fins de estudos acadêmicos. Agora, tudo muda e se profissionaliza, segundo avalia.

“Tem muita gente no trâmite do processo sofrendo à espera da cirurgia. O transgênero abomina o órgão sexual que possui e não o utiliza. Conheci, há um tempo, uma mulher trans que queria amputar o pênis. Procurou o Cremal com este objetivo e não o autorizamos. Tentamos viabilizar a cirurgia de transição para ele no HU, mas não conseguimos. Ele foi para São Paulo e realizou o sonho”, destacou Pedrosa.

O presidente frisa a importância de o interessado (a) na cirurgia ser acompanhado por diversos profissionais ao mesmo tempo. “O procedimento a ser realizado não é reversível. A pessoa que é submetida precisa ter a plena consciência de que a cirurgia é definitiva para não se arrepender. Por isso, é importante que uma equipe multidisciplinar o acompanhe para passar as orientações corretas”.

Assim como os demais personagens ouvidos pela reportagem, Pedrosa concorda que uma pessoa de 18 anos tem, sim, condições de decidir pela mudança de sexo. “Quem detecta a mudança é a própria família, e ainda bem cedo. Quando se tem 18 anos, já se sabe bem qual a identidade sexual”, avalia.

A transexual Alessandra Santos comemorou as novas regras estabelecidas pelo CFM. “Acho positiva essa alteração. Engloba também a terapia hormonal, que, se feita o mais cedo possível, evitará que as características físicas se desenvolvam, ou seja, as transexuais serão poupadas de possíveis traumas causados na puberdade e engatar com a cirurgia de readequação sexual para poderem ter uma vida plena e feliz, livre de características físicas e sexuais masculinas”.

O presidente do GGAL ressalta que a resolução do conselho autoriza o início de preparação do processo transição de sexo, que é o começo de uma grande jornada. “Isso levará de quatro a seis anos entre atendimento (psicológico, serviço social, psiquiatria, terapia de conhecimento, entre outros), para daí ele se reconhecer se é trans ou não e decidir se quer mesmo fazer a cirurgia”, esclarece Nildo.

A médica Chris Cavalcante ensina que, aos 18 anos, como se refere à identidade de gênero e não à orientação sexual, a transexualidade já está estabelecida, inclusive desde a infância. “Nesta idade, se esta pessoa teve o privilégio de ser acompanhada adequadamente por médicos e psicólogos, além de contar com o apoio da família, já estará bem avançada no processo de hormonioterapia, vivência no novo sexo e, consequentemente, pronta para a realização do grande sonho, que, na maioria das vezes, é a cirurgia”.

Gazeta de Alagoas



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