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Especial
09/01/2020 23:59:00

De menor infrator a escritor: como a internação humanizada mudou a vida de ‘José’


De menor infrator a escritor: como a internação humanizada mudou a vida de ‘José’

Janeiro de 2018.

As chamas de um dos colchões que pegavam fogo durante a última rebelião registrada no prédio principal da Unidade de Internação de Menores (UIM) de Maceió, no bairro do Tabuleiro do Martins, causaram efeito contrário em um dos adolescentes internos ali. “O fogo me hipnotizou. Eu tinha ajudado a causar aquela confusão e, enquanto observava as chamas, foi como se elas me falassem que se eu não mudasse, também viraria cinzas”, relembrou.

Sentado na área de casa, no bairro do Clima Bom, “José” já voltou para o convívio familiar e contou parte de sua história para a reportagem do TNH1. O jovem agora se prepara para o lançamento de seus manuscritos resumidos no livro “A Mente de um Socieducando”, com lançamento previsto para março deste ano, mesmo mês em que completa 18 anos.

José teve o primeiro contato com as drogas aos 11 anos, quando fumou maconha e logo passou a consumir entorpecentes mais fortes, como cocaína. Aos 15, foi recolhido para a UIM ainda sob efeito químico. “Quando aconteceu, tive a impressão que minha vida tinha acabado, mas foi o contrário. Ali, no meio daquele fogo todo, eu tomei uma decisão e mudei de vida”, garantiu.

 
 
Imagem: Seprev

Semanas depois do princípio de rebelião, o adolescente descobriu uma das duas bibliotecas que existem dentro do complexo, onde passou a ler diariamente. Depois, pediu a um dos orientadores um caderno simples e uma caneta, onde começou a escrever a própria vida. 

Órfão, o jovem foi criado pela tia, "dona Maria", que ao longo dos quase três anos de reclusão não deixou de visitar o menino e semear palavras de esperança. “Nos primeiros dias eu quase morri e não conseguia dormir de preocupação com ele. Mas todo domingo eu estava lá no horário da visita. Firme”, lembrou a dona de casa. A história de José passa pela ausência da figura paterna e falta de referências sociais. E este é, em geral, o perfil que mais chega na unidade de internação.

Informações da Secretaria de Estado de Prevenção à Violência (Seprev) apontam que 320 adolescentes – incluindo 18 meninas – cumprem medidas socioeducativas nos 12 centros de recolhimento espalhados por Maceió e região metropolitana, atualmente. Destes, apenas seis pertencem à classe média.

 

A superintendente de medida socioeducativa da Seprev, Denise Paranhos, explica que as histórias geralmente se parecem quando os menores chegam na adolescência. “Eles começam a criar fantasias relacionadas a dinheiro, celulares, entre outras coisas. Quase sempre não há estrutura para lidar com sentimentos negativos, como a frustração”, explica Denise, psicóloga por formação.

Ao contrário do que muita gente pensa, os números espelham que o tráfico não é o delito mais praticado. Entre os apreendidos, o crime que lidera o ranking da violência é o roubo, seguido por homicídio e porte de arma de fogo. Seis adolescentes de 13 anos estão cumprindo medidas socioeducativas por estes crimes. Negociar substâncias ilícitas vem em 4º lugar. “Isso acontece por conta da sedução da possibilidade de poder e do dinheiro fácil exercida pelas facções criminosas que recrutam nossos adolescentes cada vez mais cedo”, observou Denise.

De “masmorra” a referência nacional

Em abril de 2014, o então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ministro Joaquim Barbosa, esteve em Maceió para conhecer pessoalmente as instalações e as condições que os menores vivenciavam em Alagoas, depois de receber relatos de possíveis casos de tortura praticados dentro dos centros de detenção. À época, Barbosa classificou o que viu como “uma masmorra onde os jovens eram confinados”. Alagoas ocupava a última colocação na qualidade do serviço oferecido para reinserir os adolescentes infratores na sociedade.

Cinco anos depois, uma parceria que promove a corresponsabilidade entre o poder público, as famílias, empresários e a sociedade em geral mudou o que parecia sem solução e fez da assistência prestada dentro da UIM um modelo que já é copiado em todo o país. “Sabemos que está funcionando por que temos uma porcentagem quase nula de jovens que voltam a praticar delitos. Geralmente isso acontece quando a família também tem envolvimento com o crime”, explicou Paranhos. “E mesmo quem tem dificuldades um pouco mais profundas continua sendo amparado na qualidade de egresso, até que se sinta seguro para caminhar sozinho”, acrescentou.

Os internos recebem assistência médica, odontológica, aulas regulares e realizam cursos profissionalizantes no decorrer do cumprimento da medida socioeducativa. “Eles não ficam ociosos nem no horário da noite, quando tentam descobrir no que são bons. Na última formatura, tivemos 150 formandos”, comemora Paranhos.

A parceria entre empresas, entidades como o Sebrae e Fiea, as principais universidades de Alagoas e o Ifal só foi possível graças a intervenção do Ministério Público Estadual (MPE-AL), através da promotora de justiça da capital, Marília Cerqueira.

“Trabalhamos como formiguinhas, convidando empresários e empresárias para visitar as unidades e conhecer o trabalho de recuperação que é feito. Com isso, a maioria deles se torna apoiador do projeto e conseguimos conquistar bons resultados”, diz a promotora. “Nosso propósito é preparar os jovens para não se colocar em situação de vulnerabilidade social, ao retornar para o convívio familiar”, explicou Cerqueira.

Quando são efetivadas, as empresas recebem o selo ‘Amigo da Socioeducação”, entre outros benefícios.

 
Imagem: Seprev

Melhorias

Para a promotora Marília Cerqueira, um dos maiores desafios atualmente é fazer com que os adolescentes apreendidos no interior do Estado e cumprem medida socioeducativa em Maceió continuem recebendo a visita de suas famílias. “Sabemos que quando os parentes deixam de visitá-los, existe uma sensação de abandono maior. Ficam sem perspectiva e desanimados. É preciso manter os laços para que os jovens em conflito com a lei não desistam de si mesmos”, observou Cerqueira. 

O plano da "força-tarefa do bem" é incentivar cada vez mais a Educação dentro do sistema. “No último Enem, 22 meninos e duas meninas fizeram as provas dentro das unidades. No próximo, esperamos que esse número seja maior ainda”, planejou a promotora.

Promotora Marília Cerqueira / Imagem: MPE-AL

“José”, o personagem central desta reportagem, foi um dos 22 candidatos que tentaram uma vaga no Ensino Superior, mas apenas para saber como se sentia. “Me surpreendi com minha caminhada até aqui e confesso que ainda sinto medo, mas não deixo ele me dominar”, disse o adolescente. “A melhor arma para enfrentar meus medos é o amor. Primeiro eu aprendi a me amar e depois peguei amor aos livros. Agora é correr atrás dos meus sonhos”, disse sorrindo o futuro jogador de futebol e psicólogo.

Tnh1



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