As trocas de farpas entre Bolsonaro e o presidente eleito da Argentina, Alberto Fernández, ganharam um novo capítulo no último fim de semana, quando o governo brasileiro informou que não enviaria representante à posse, marcada para esta terça (10/12).
Em novembro, Bolsonaro havia decidido que seria representado pelo ministro da Cidadania, Osmar Terra. Neste domingo (08/12), chegou a informar que o Brasil não estaria presente na solenidade. No fim da tarde de segunda voltou atrás e afirmou que enviaria o vice, Hamilton Mourão.
A última vez que um presidente brasileiro não esteve na posse de um presidente argentino foi em 2002, quando o país, que ainda digeria a crise de 2001, trocou de presidente pela quinta vez desde a renúncia de Fernando de la Rúa. Eduardo Duhalde assumiu poucos minutos depois de ser eleito pela Assembleia Legislativa.
Parte dos analistas econômicos e representantes de setores exportadores brasileiros não acreditam que o clima de animosidade entre os dois políticos, que começou ainda antes das eleições argentinas, terá desdobramentos práticos. A avaliação é de que, como os dois países são bastante interdependentes - e diante da desaceleração da economia global -, o pragmatismo falará mais alto.
Mas quais consequências práticas que um eventual afastamento da Argentina teria para o Brasil?
O setor que mais sofreria caso houvesse um estremecimento das relações bilaterais seria a indústria.
A Argentina é o principal destino das exportações de produtos manufaturados brasileiros e o terceiro se contabilizados todos os produtos.
Enquanto o Brasil exporta muita soja e minério para a China e para os EUA, por exemplo, vende para o vizinho itens de maior valor agregado, que vão desde calçados e automóveis a máquinas e peças.
Ele é o principal parceiro comercial da Argentina, respondendo por 27% de todas as importações do país (dados de 2017). A China fica em segundo lugar, com 19%.
Desde a criação do Mercosul, em 1991, a indústria dos dois países tem ficado mais integrada. Isso fica mais claro quando se olha no detalhe a composição das exportações brasileiras para a Argentina.
Um estudo conduzido pelas economistas Mayara Santiago e Luana Miranda, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre-FGV), mostrou que 58% de tudo o que é vendido para o parceiro são bens intermediários.
Ou seja, são motores, peças e outros manufaturados que são usados pela indústria argentina, que vão compor produtos acabados feitos no país.
Participação por produto* - em %
Produto | Participação |
---|---|
Insumos industriais elaborados | 31,5 |
Automóveis para passageiros | 21,2 |
Peças para equip. de transp. | 15,7 |
Bens de capital | 6,4 |
Equip. de transp. industrial | 6,1 |
Outros | 19,1 |
Assim, em um cenário de distanciamento entre os dois países, a Argentina também seria prejudicada, já que poderia perder fornecedores importantes para sua indústria.
"Manter uma boa relação é benéfico para os dois lados", pondera Mayara Santiago.
O impacto da atual crise argentina sobre o setor no Brasil também dá dimensão dessa interdependência. Ainda de acordo com o estudo das economistas do Ibre-FGV, a recessão da Argentina tirou 0,2 ponto percentual do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro em 2018.
Ou seja, sem o "choque argentino", a economia brasileira teria crescido 1,3% em vez de 1,1% (o estudo foi feito antes da revisão do PIB de 2018 pelo IBGE, que alterou o dado do ano passado para 1,3%).
Para 2019, a projeção é de que esse impacto negativo seja ainda pior, de 0,5 ponto percentual.
Este será, aliás, o primeiro ano desde 2003 que a balança comercial do Brasil com a Argentina vai ficar no vermelho. Entre janeiro e novembro, o saldo é negativo em US$ 641,8 milhões.
A redução das exportações para o vizinho, acrescenta a economista, tem ainda um "efeito transbordamento" importante, que vai além da indústria e afeta o comércio e os serviços. Uma máquina que deixa de ser exportada, por exemplo, significa menos um frete, menos volume de trabalho no escritório de representação comercial e por aí vai.
A recuperação da demanda interna pode atenuar o "efeito Argentina" em 2020, afirma Mayara, e compensar a queda nas vendas para o vizinho.
Ainda assim, a manutenção da boa relação do Brasil com seus parceiros comerciais se mantém uma variável importante, já que a indústria como um todo vem perdendo espaço na economia. Para o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), o país passa por um dos mais graves casos de "desindustrialização prematura" do mundo.
Um estudo divulgado pela entidade em agosto mostrou que, enquanto o setor industrial perdeu 36,1% de peso no PIB global entre 1980 e 2018, no Brasil o recuo foi de 58,6% no mesmo período.
Para o economista Guillermo Tolosa, analista da Oxford Economics, o discurso muitas vezes agressivo de ambos os lados tem o objetivo principal de agradar as respectivas bases eleitorais de Bolsonaro e de Alberto Fernández.
Enquanto o presidente brasileiro se define como um político conservador e liberal, o colega argentino é um veterano do peronismo - movimento que, apesar de agregar os mais diferentes matizes ideológicos, lançou os principais nomes da esquerda que chegaram à Casa Rosada, como Néstor e Cristina Kirchner.
Ele vê as trocas de farpas como naturais. A expectativa, entretanto, é que elas se mantenham na esfera da política e não tenham grandes desdobramentos práticos.
"O incentivo para se colocar barreiras de comércio não existe, de um lado e de outro", avalia. "Não faz sentido se autoinfligir 'mais dor' (além daquela causada pela recessão argentina) em uma guerra comercial ou algo parecido."
A aparente hostilidade entre os dois presidentes seria algo como, na expressão em espanhol, "mucho ruido y pocas nueces", brinca o economista, citando o ditado que no Brasil equivale a "muito barulho por nada".
Assim esperam os setores exportadores brasileiros.
Haroldo Ferreira, presidente da Abicalçados, que representa a indústria calçadista, diz acreditar que a diplomacia vai resolver eventuais desentendimentos entre os chefes de Estado.
"A parte política é uma coisa, o mundo real é outra."
Mesmo com a retração da economia argentina, conta Ferreira, o país segue sendo o segundo principal comprador dos calçados brasileiros, absorvendo a produção de diferentes polos, do Rio Grande do Sul e São Paulo à Bahia e ao Ceará.
Assim, a principal expectativa do setor em relação ao novo governo, diz ele, é em relação à sua capacidade de reaquecer a economia argentina.
Ferreira, que trabalhou na Azaleia por 23 anos, lembra das barreiras à importação impostas por Cristina Kirchner - hoje vice de Alberto Fernández - quando ela esteve na presidência, entre 2007 e 2015.
No pior momento, os obstáculos colocados pelo governo argentino para a compra de produtos brasileiros, que precisavam de licenças especiais para entrar no país que às vezes demoravam meses para sair, impôs prejuízos de quase US$ 200 milhões ao setor.
"Mas é melhor lidar com barreiras alfandegárias e ter uma Argentina que compre nossos produtos do que o contrário", diz ele, referindo-se à situação do país nos últimos dois anos.
A chegada de Mauricio Macri ao poder, em 2015, foi um ponto de inflexão na orientação protecionista da política de comércio exterior. A crise econômica que se intensificou a partir de 2018, entretanto, corroeu o poder de compra dos argentinos e derrubou a demanda.
De janeiro a outubro, as exportações de calçados para o país recuaram 35,7% em relação ao mesmo período do ano anterior.
O percentual é parecido com o observado pela indústria de máquinas e equipamentos. Entre janeiro e novembro, o recuo foi de 31,9%, para US$ 621,3 milhões, de acordo com os números da Abimaq, que representa o setor.
"Para nós, é extremamente importante que o Brasil busque o diálogo, não só com a Argentina, mas com qualquer mercado", diz Patrícia Gomes, diretora de mercado externo da entidade.
Segundo ela, o Brasil vende ao país um leque amplo de produtos, que vão de máquinas usadas no setor têxtil e do plástico, por exemplo, a maquinário agrícola. A Argentina é o segundo principal destino para as empresas associadas à Abimaq, atrás apenas dos EUA.
Bolsonaro e Alberto Fernández têm trocado provocações desde meados deste ano.
Quando a crise na Argentina apertou e a possibilidade de reeleição de Macri, que era dada praticamente como certa até 2018, foi colocada em dúvida, o presidente brasileiro chegou a dizer que um eventual retorno de Cristina Kirchner ao poder poderia transformar o país "em uma Venezuela".
Em julho, por sua vez, Alberto Fernández visitou o ex-presidente Lula na prisão em Curitiba e, em agosto, após a vitória de sua chapa nas primárias, ressaltou que o Brasil continuaria sendo o principal parceiro comercial do país, para depois emendar que Bolsonaro era "um elemento da conjuntura na vida do Brasil" e alguém "misógino, racista e violento".
Dias depois, o presidente brasileiro também causou polêmica ao dizer que avalizava as declarações do ministro da Economia, Paulo Guedes, que afirmara que, se o peronismo vencesse e Fernández impusesse restrições à abertura comercial do Mercosul, o Brasil poderia deixar o bloco.
No dia em que os argentinos foram às urnas, durante a apuração dos votos, Fernández postou no Twitter uma foto parabenizando Lula.
"Faz aniversário hoje o meu amigo Lula, um homem extraordinário que está preso injustamente", escreveu.
Bbc Brasil