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Especial
10/12/2019 18:00:00

Dezembro vermelho: “O momento mais difícil para um soropositivo é a aceitação”, diz jovem sobre HIV


Dezembro vermelho: “O momento mais difícil para um soropositivo é a aceitação”, diz jovem sobre HIV

Marcel Vital

Junho deste ano parecia igual a muitos outros na vida de Fernando (nome fictício). Depois de ter tido uma desilusão amorosa, ele resolveu reinstalar novamente em seu celular um aplicativo para relacionamento dedicado exclusivamente ao público gay, queer, bissexual e transexual. Grande parte dos que entram na rede procuram sexo sem compromisso. Talvez a principal razão seja a geolocalização, na qual é possível encontrar com uma pessoa que está a metros de você.

Um cardápio farto e variado que permite o usuário filtrar raças, “tribos” e tipos de corpo. De executivos casados com mulheres e filhos até gays com uma fachada hétero. Papo vai, papo vem, ele chegava a passar horas conversando com vários homens. Conforme seu dedo deslizava pela tela, novas imagens se sucediam até formarem mais de duas centenas. Numa dessas, acabou se interessando por Caio (nome fictício). O diálogo começou no aplicativo, pulou para o WhatsApp, até acontecer o encontro cara a cara, que, inclusive, precisou de três tentativas para finalmente se concretizar.

Aos 23 anos, Fernando é graduado em letras e tem certa paixão pela escrita. É um jovem magro, que mede 1,79 metro, possui rosto alongado, e chama atenção pelo sorriso largo.

Com base na confiabilidade das informações divulgadas no aplicativo e na plataforma de mensagens instantâneas e chamadas de voz para smarthphones, o sexo casual aconteceu na casa onde Caio cuidava de um idoso. No momento em que foi transar, Fernando chegou a pegar a camisinha e o lubrificante à base de água. No entanto, Caio, com toda lábia, preferiu fazer o bareback, termo em inglês utilizado para se referir à prática de atos sexuais (ou, mais especificamente, sexo anal) sem a utilização do preservativo, justificando que, como atua na área da saúde, os exames estavam em dia e, portanto, os dois não corriam o risco de contrair o HIV e outras infecções sexualmente transmissíveis (IST).

“Ele me passou total segurança e ainda disse que, se a gente fizesse com camisinha, ele ia brochar. Ainda fiquei com o pé atrás e questionei: ‘será?’. Aí ele acrescentou: ‘fica tranquilo que não vai acontecer nada, rapaz. Tô limpo! Tenta relaxar’. E acabamos transando. Depois, tomei banho e fui trabalhar”, contou Fernando.

Ele comentou que já tinha conhecimento a respeito da Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) ­– que é uma estratégia de prevenção disponível no Sistema Único de Saúde (SUS), utilizada com o objetivo de reduzir a transmissão do HIV e contribuir para o alcance do fim da epidemia. A PrEP foi iniciada no Brasil em 2017 como um novo método de prevenção à infecção pelo HIV.

É um tratamento que combina os antirretrovirais (ARV) fumarato de tenofovir desoproxila (TDF) e entricitabina (FTC). Os critérios para indicação da PrEP consideram quatro grupos de segmentos populacionais categorizados como prioritários. São eles: os gays e outros homens que fazem sexo com homens. Pessoas que expressam um gênero diferente do sexo definido ao nascimento. Nesta definição são incluídos os homens e mulheres transexuais, transgêneros, travestis e outras pessoas com gêneros não binários. Homens, mulheres e pessoas trans que recebem dinheiro ou benefícios em troca de serviços sexuais, regular ou ocasionalmente. E parceria heterossexual ou homossexual na qual uma das pessoas e infectada pelo HIV e a outra não.

“Se você tomar a PrEP diariamente, a medicação pode impedir que o HIV se estabeleça e se espalhe em seu corpo. Ela só tem efeito se você tomar os comprimidos todos os dias. Caso contrário, pode não haver concentração suficiente do medicamento em sua corrente sanguínea para bloquear o vírus. Contudo, a PrEP não protege de outras IST, tais como sífilis, clamídia e gonorreia”, explicou Scheila dos Anjos, responsável técnica do Programa Estadual de IST/Aids e Hepatites Virais.

Todavia, Fernando desconhecia a Profilaxia Pós-Exposição (PEP) – que é a utilização de antirretroviral após a infecção pelo HIV em situações de acidente com material biológico, violência sexual e exposição sexual consentida. Se soubesse da prevenção combinada como forma de enfrentar a epidemia de HIV/Aids, ele acredita que não teria contraído o vírus.

O ideal, de acordo com a responsável técnica do Programa Estadual de IST/Aids e Hepatites Virais, é que o indivíduo comece a tomar a medicação em até duas horas após a exposição ao vírus e no máximo em 72 horas, visto que isso impede que o HIV se estabeleça no organismo. A eficácia da PEP pode diminuir à medida que as horas passam. “Se tivesse esse conhecimento, tinha procurado um serviço de saúde mais próximo da minha casa e tinha tomado”, lamentou Fernando.

O jovem revelou que, após uma semana de ter se envolvido sexualmente com Caio, transou com Lucas (nome fictício) e, em agosto, com Ricardo (nome fictício). A relação sexual com os três foi sem preservativo. O primeiro ele conheceu no aplicativo, enquanto os dois últimos no Facebook.

“Era difícil eu fazer sexo sem preservativo. O contato sexual com esses três caras aconteceu pelo fato de eles insistirem muito em não usar a camisinha. Eles falavam que era seguro e eu acabei acreditando muito na conversa deles. Culpo-me por não ter tido a iniciativa de dizer ‘não’”, criticou ele. “Também sentia fraqueza de um deles dizer que a gente não ia transar mais e, simplesmente, perder o contato”, disse, ao completar que a opção de usar ou não o preservativo nunca era feita no aplicativo ou nas conversas das redes sociais, e sim na hora H.

Após o ocorrido, Fernando procurou um urologista para fazer exames de rotina, incluindo os das IST. No penúltimo dia para terminar o mês de agosto, o jovem realizou os exames prescritos pelo seu médico, contudo, por volta das três da tarde, a recepcionista do laboratório ligou para ele pedindo uma nova amostra para o exame do HIV. “Como eu ia fazer o exame no dia seguinte, comecei a pesquisar sobre os sintomas na sexta-feira. Lembro que eu chorava muito e, por conta disso, tive problemas de insônia. Dos três caras com quem me envolvi, o Caio estava no topo da lista quando pensava na infecção pelo HIV”, analisou.

Isso porque, de acordo com Fernando, antes de fazer os exames laboratoriais, ele acabou se envolvendo novamente com Caio, inclusive, no mesmo lugar em que aconteceu o primeiro envolvimento sexual dos dois. Fernando lembra que, ao chegar lá, Caio falou que era casado. “Eu falei pra ele que, dessa vez, a gente ia fazer sexo só com camisinha”, advertiu. Contudo, o desejo sexual falou mais alto, e os dois acabaram não se protegendo como deveriam. “Eu disse: ‘é melhor a gente se proteger, pois você não sabe da minha vida sexual e eu não sei da sua. Aí ele respondeu: ‘o que a gente não acha em casa, acaba encontrando na rua’. Congelei na hora”, alarmou-se Fernando.

As inúmeras interrogações começavam a pairar sobre sua cabeça. “Eu questionei: ‘se esse cara mantém relação amorosa comigo sem camisinha, imagina com o marido dele? E vai que o marido dele tem HIV ou alguma IST? Ou, então, se ele faz sexo com outros caras no aplicativo sem proteção?’. Por isso, tive a certeza absoluta que contraí o vírus dele”, considerou.

Como o exame do laboratório estava previsto para sair na metade do mês de setembro, Fernando não aguentou a ansiedade e resolveu procurar o Serviço de Assistência Especializada (SAE) do Bloco I do PAM Salgadinho, localizado no bairro Poço, em Maceió. Do tempo de início até o tempo de término para o resultado de o exame ficar pronto, os ponteiros do relógio pareciam não passar. Ao ler “REAGENTE PARA HIV 1”, Fernando precisou chorar contido e gritar abafado.

“Na hora eu fiquei aliviado, mas com muita raiva de mim. Sempre me protegi, me cuidei tanto e, por um simples deslize, acabei sendo infectado. Fiquei com aquele sentimento de repulsa porque não sou uma pessoa leiga. Entrei num argumento de uma pessoa que quis me machucar. Eu sei que o HIV não tem cura, também entendo que, mesmo me cuidando, isso não vai sair de mim. Sempre achei que isso nunca aconteceria comigo”, lembrou, em tom de tristeza.

Fernando disse que, no mesmo dia em que soube do resultado, falou para os pais. O desespero tomou conta da família, que se debulhou em lágrimas, achando que o filho ia morrer muito em breve. “Recordo-me que olhei pra eles e disse: ‘fiquem tranquilos que vai ficar tudo bem. Isso não é o fim do mundo. Posso viver de forma saudável e feliz, desde que eu tome os remédios todos os dias para o resto da minha vida e siga as recomendações médicas pra que não surjam complicações que atrapalhem o meu cotidiano. Também é importante levar um estilo de vida saudável e, claro, usar preservativo em todas as relações sexuais agora’. A meu ver, é só uma questão de cuidado”, refletiu, se preparando para dizer algo.

Também avisou sobre o diagnóstico para os três rapazes que manteve relações sexuais. “Eu liguei para o Caio, o Lucas e o Ricardo e disse a mesma frase: ‘olha, não sei se contraí o vírus de você ou se eu já estava infectado quando a gente transou. Mas fiz o exame hoje e descobri que estou com HIV. Por favor, faz o teste rápido pra saber se você está bem’. Os três ficaram assustados”, contou Fernando.

Lucas e Ricardo fizeram o teste rápido após ter passado a janela imunológica que, na maioria das vezes, dura 30 dias, e o resultado deu NÃO REAGENTE PARA HIV 1, enquanto Caio, por meio de troca de conversas no WhatsApp com Fernando, disse que estava trabalhando muito, mas, assim que encontrasse um tempo na agenda, ia fazer. “O Caio me disse: ‘vai ficar tudo bem, pois Deus está com você. É só você aceitar que tem o vírus e tomar os remédios”, descreveu. De acordo com Fernando, Caio propôs de eles conversarem melhor em outro horário, pois, como o seu celular estava descarregando, ficaria impossível o diálogo transcorrer. “Quando desejei que ele tivesse um bom trabalho, a foto do perfil dele sumiu imediatamente do WhatsApp”, frisou. Por receio ou insegurança, Caio acabou bloqueando Fernando na plataforma de mensagens instantâneas, assim como nas redes sociais.

Informação ­– Se existem problemas de saúde envoltos em nuvens de preconceito, os causados pelo vírus HIV provavelmente estão no topo da lista. A falta de informação é muita e o tema raramente é abordado, não só por quem convive com ele diariamente, como pela sociedade. Pensando nisso, Fernando retomou sua conta no aplicativo, não mais para flertar, e sim para combater esse tabu.

A conta no aplicativo que ele criou, intitulada Cuide-se, está servindo para falar do HIV, do tratamento, da vida de um soropositivo, das mudanças pelas quais ele passa, assim como as dúvidas que as pessoas têm sobre o vírus. Na biografia, ele descreve: “Eu contrai o HIV com uma pessoa desse aplicativo por conta do tesão. Acabei transando sem camisinha. Hoje eu estou fazendo tratamento para ficar indetectável. Por isso, proteja-se SEMPRE! HIV não escolhe pessoas, e sim oportunidades”.

“Muita gente que tem o HIV começou a enviar mensagens pra mim. Algumas pessoas, inclusive, relatam que contraíram o vírus com os namorados ou maridos. É uma forma de eu ajudar outros homens a prestarem mais atenção com quem conversam no aplicativo. Eles me enviam mensagens de apoio e isso tem sido incrível. É uma troca mútua”, alegra-se.

Mais confiante – Atualmente, Fernando encontra-se em tratamento com a equipe multiprofissional do SAE do Bloco I do PAM Salgadinho, formada por enfermeiros, infectologistas, psicólogos, nutricionistas e assistentes sociais. Ele toma dois comprimidos antes de dormir, que reúne os antirretrovirais mais comuns. E vale lembrar: eles são gratuitos, garantidos por lei. Aos poucos, o jovem está restabelecendo o seu equilíbrio emocional e, assim, vivendo boas sensações no seu dia a dia.

Em relação aos efeitos colaterais das medicações descritas na bula, ele conta que teve muito sono nas duas primeiras semanas. Mas, conforme o tempo foi passando, acabou melhorando. Como está no início do tratamento, Fernando precisa repetir seus exames de sangue a cada três meses, depois, a cada seis. O objetivo é sempre verificar a carga viral (a quantidade do vírus HIV no sangue) e a contagem de linfócitos T CD4 (células do sistema de defesa).

O remédio pode levar alguns meses até que se consiga reduzir os níveis de vírus a patamares indetectáveis e permitir que o sistema imunológico dele comece a se recuperar. “A terapia antirretroviral possibilita que as pessoas que vivem com o HIV recuperem sua qualidade de vida, voltem ao trabalho, desfrutem de suas famílias e de um futuro cheio de esperança”, garantiu Scheila dos Anjos. 

Um receio que ele destacou é o de se envolver com alguém e, com o passar do tempo, a pessoa se afastar em função da sua condição sorológica. Fernando conta que, no período em que estava com a suspeita do vírus HIV, estava conhecendo um rapaz no Facebook. Marcaram encontro, trocaram beijos apaixonados e começaram a se ver quase todos os dias da semana. Entretanto, no dia em que ele recebeu o diagnóstico do exame, conversou com o rapaz e falou: ‘olha, descobri uma coisa hoje que mudou a minha vida. Não sei o que vai acontecer entre nós daqui pra frente. Sou soropositivo. Fui muito sincero e transparente com ele”, revelou.

Segundo Fernando, o então ficante disse que a relação não iria mudar sob hipótese nenhuma e que eles continuariam juntos. Que só bastaria um cuidado e uma atenção maior dos dois. Só que isso acabou não acontecendo. “Ele começou a se afastar. Pediu desculpas. Falou que não queria ser pressionado. A justificativa foi que o pai estava passando por alguns problemas. Aí depois ele se mostrou totalmente desinteressado. Pra não me machucar ainda mais, optei pelo afastamento. E, desde então, estou solteiro”, contou. “O momento mais difícil pra um soropositivo é a aceitação. Vivemos numa sociedade preconceituosa e temos medo da rejeição da nossa família, dos nossos amigos, dos nossos colegas de trabalho e do nosso parceiro no relacionamento. Se não tivermos cuidado, acabamos indo para o fundo do poço”, avaliou Fernando.

Ao ser questionado sobre o que o faz feliz, Fernando pensa um pouco, mas arremata em seguida: “Hoje o que vai me fazer totalmente feliz é conquistar a minha casa própria e, sobretudo, ter paz e saúde. Antes eu achava que pra estampar o meu sorriso de canto a canto era preciso ter alguém na minha vida. Aprendi a conviver com a minha própria companhia e percebi que o amor-próprio é o que me guia a cada dia. Quero me amar cada vez mais e limpar minha alma de todas as coisas negativas pelas quais passei nos últimos meses”, ponderou o jovem, rindo.

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