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Especial
17/11/2019 17:00:00

Parceria em xeque: polêmica 30 anos após a morte do ‘Maluco Beleza’


Parceria em xeque: polêmica 30 anos após a morte do ‘Maluco Beleza’

Um episódio obscuro e inconclusivo, que teria acontecido há 45 anos, fez o Maluco Beleza e roqueiro Raul Seixas, o ídolo de tantas gerações – morto há exatos 30 anos – entrar na berlinda de suspeitos de alcaguetagem (expressão popularmente chamada de ‘dedo duro’ ou delação) na música popular brasileira. Tudo porque Seixas virou “suspeito” de ter entregue aos militares nos chamados “anos de chumbo” do regime (ditadura) militar ninguém menos que seu parceiro musical, o celebrado escritor de fama mundial Paulo Coelho, levantada na nova biografia do baiano, “Raul Seixas: Não Diga que a Canção Está Perdida”, do jornalista Jotabê Medeiros, lançada no último dia 1º de novembro.

Em função disso, o jornal Tribuna Independente foi ouvir fãs dos dois artistas em Maceió e traz, ainda, o depoimento exclusivo de quem conviveu com o cantor e compositor baiano, o guitarrista do Maluco Beleza, Rick Ferreira, 66 anos, que conversou com o Tribuna sobre o assunto.

Bastou isso para que Raul Seixas, em informação antecipada pela Folha de S. Paulo no dia 23 de outubro, fizesse o roqueiro entrar na mesma lista de personas non gratas que corre nas redes sociais e que já inclui personalidades como Anitta e, mais recentemente, MC Gui.

Rapidamente, teve quem dissesse que nunca mais ouviria o artista depois de saber do episódio. Ao jornal, Paulo Coelho não confirmou nem negou a história e acendeu ainda mais a tal suspeita. “Águas passadas não movem moinhos”, disse em um tuíte, assim que a repercussão tomou as redes sociais.

Rick detona também escritor de biografia: “Canalha!”

Em contato com o jornal Tribuna, Rick Ferreira chama o escritor de “canalha” e ainda levanta suspeição sobre outra personagem que até agora ainda não havia aparecido nas discussões sobre o assunto, a mulher do parceiro de Raul, Adalgisa Rios. “O que eu penso sobre essa situação está resumido em uma postagem que eu fiz na minha página do Facebook. Eu particularmente acho que o escritor em questão foi canalha e mau caráter, que, no intuito de criar polêmica e, principalmente, vender seus livros, levantou um tema sem ter nenhuma prova concreta de que isso seja verdade. E o pior: levantar uma falsa acusação a uma pessoa (Raul) que não está mais aqui pra se defender”, disse o guitarrista.

E continua: “As únicas pessoas que poderiam falar alguma coisa sobre esse fato seriam o próprio Raul, que não está mais aqui, e a outra seria o próprio Paulo, que ficou em cima do muro, nem dizendo que sim nem não. Talvez ele esteja gostando de deixar essa dúvida no ar, pois assim ele volta ao topo das paradas sendo assunto na mídia. E já que é para “supor”, como o escritor do livro está fazendo, quem garante que não possa ter sido a própria Adalgisa (mulher de Paulo Coelho na época) e não o Raul que entregou o Paulo?? Porque segundo consta, ela foi liberada e o Paulo continuou detido. Eu gostaria muito que não os fãs alternativos, mas os verdadeiros fãs do Raul não comprassem esse livro, por maior que seja a curiosidade”, completa o guitarrista.

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Guitarrista de Raul Seixas, Rick Ferreira abre o verbo contra biografia que supostamente revela delação do amigo Maluco Beleza contra o escritor e ex-parceiro Paulo Coelho (Foto: Divulgação)

A suspeita ventilada na biografia tem origem em um documento emitido pelo Dops no Rio de Janeiro. No parecer do pedido de busca na casa dos compositores, cujo assunto é descrito apenas como “Raul Seixas”, Paulo Coelho é listado como militante do PCBR [Partido Comunista Brasileiro Revolucionário] — o escritor nega que tenha sido filiado do grupo —, enquanto sua mulher, Adalgisa Rios, era ligada ao PC do B [Partido Comunista do Brasil]. Ambos eram tidos como foragidos.

Invasão e tortura contra Paulo Coelho

As informações a respeito do casal são creditadas a Douglas Alberto Milne-Jones (cujo codinome supostamente era Geraldo). No entanto, uma referência a Raul levanta a suspeita: “É possível, por intermédio do compositor, localizá-los e prendê-los”, diz o documento. Mais à frente, um trecho descreve os dados solicitados com o pedido de busca: “Por intermédio do referido cantor, tentar localizar e prender Paulo Coelho e Adalgisa Rios”. Poucas semanas depois, um grupo de homens armados invade o apartamento de Paulo Coelho. Ele é interrogado e fichado no Dops e passa por várias sessões de tortura, ao longo de duas semanas.

Dos álbuns de Raul Seixas, o guitarrista Rick Ferreira só não participou do primeiro, “Krig-ha, bandolo!”, de 1973. Até o fim da vida do cantor, em 1989, ele foi seu fiel escudeiro, chegando a produzir um de seus últimos LPs, “Uah-bap-lu-bap-lah-béin-bum!”, de 1987. Nesse disco, a música “Cowboy fora da lei”, inclusive, mereceu menção da revista “Guitar Player” por um dos 50 grandes solos de guitarra de rock de todos os tempos.

Em entrevista há alguns anos ao jornal O GLOBO, Rick afirmou que ao contrário do que muita gente pensa, Raul era um cara light, sabia como pedir o que queria aos músicos.

Fãs alagoanos opinam sobre polêmica

O jornal Tribuna Independente também foi beber na fonte de fãs alagoanos dos dois parceiros icônicos da MPB sobre o que pensam sobre toda esta polêmica.

Felipe Augusto Carvalho, “Felipe Seixas”, como é conhecido na cena artística da terrinha, é vocalista há 18 anos da banda alagoana Cachorro Urubu (uma das músicas famosas de Raul), banda cover que presta homenagem à obra do cantor, ao levar o repertório do baiano ao público, foi enfático ao se posicionar sobre a história.

“Não me deixo levar por esses tipos de notícias. Raul era um anarquista, tirava muita onda, mas era um cara bom”, ressalta. “Não acredito de maneira alguma que Raul tenha feito isso”. E surpreende ao rebater a polêmica: “Eu acredito mais que tenha sido o contrário. Além disso, as coisas que o Paulo (Coelho) escreve são uma bosta. Já li alguns livros dele e não gostei”, diz Felipe. Sobre o autor do livro, o jornalista Jotabê Medeiros, o fã de Raul crava “Esse cara está em verdade quer é vender livro com essa história”.

“O problema é que as pessoas hoje em dia estão se guiando em dia por essas malditas fake news (notícias falsas). E ainda que fosse verdade isso, a obra de Raul é maior e mais importante que o criador”, defende Felipe.

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Roqueiro Felipe Augusto diz que o problema é que as pessoas hoje em dia estão se guiando por notícias falsas e que obra de Raul é maior que especulações (Foto: Edilson Omena)

Questionado sobre qual música da dupla gosta mais, Felipe exita: “Eu teria que citar para você pelo menos umas trinta”. Para depois vaticinar. “Olha, quando eu era criança, Mosca na Sopa me fez pirar e apaixonar por Raul”.

Fã de Paulo Coelho diz que “parceria foi vantajosa para Raul”

Já o estudante Emmanuel Cardoso Teixeira, 18 anos, é leitor ávido das obras de Paulo Coelho e expõe um verdadeiro arsenal do escritor e ex-parceiro de Raul Seixas celebrado no mundo inteiro.

“Como escritor, Paulo é muito criticado no meio acadêmico por não reconhecê-lo como literatura, mas para mim ele consegue fazer uma fusão perfeita entre exoterismo, autoajuda e ficção”, opina o leitor.

Sobre a parceria de seu escritor predileto como compositor e parceiro de Raul Seixas, Emmanuel foi logo dizendo. “Com certeza, a parceria com Raul e do Paulo (Coelho) foi muito mais vantajosa para o Raul, pois as principais faixas e canções famosas que eternizaram o Raul foram as canções em que o Paulo compôs e pôs o dedo”, diz o leitor, ao revelar que a música da parceria dos dois de que mais gosta é “Sociedade Alternativa”.

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Jovem Emmanuel Cardoso já leu tudo sobJre Paulo Coelho e sustenta que escritor deu brilho maior nas músicas que Raul cantou (Foto: Edilson Omena)

Em relação à polêmica do livro de Jotabê Medeiros sobre a suposta delação, Emmanuel diz acreditar que não o documento não é conclusivo e defende Raul Seixas. “Os reais inimigos não são Raul ou Paulo Coelho, e sim o regime militar, pois era um tempo muito tortuoso. Lembremos que a ditadura militar conseguiu destruir famílias e esse período sim é o verdadeiro vilão. O próprio Paulo disse que suspeitava disso, mas levou isso ao túmulo. Aquela época julgar as pessoas por isso ou aquilo é complicado demais. E outra: não há nada provado nessa polêmica”, afirma o estudante.

Fato trouxe à tona termo “cancelar”

O fato é que Raul Seixas trouxe à tona nas redes sociais a expressão “Estado que cancela”.

“Isso de cancelar não é novo na música brasileira”, observa Bruno Baronetti, pesquisador da música popular brasileira na Universidade de São Paulo (USP). Nos anos de chumbo, era o próprio Estado quem cancelava os artistas. “Rolos de filmes eram confiscados, músicas não eram lançadas. Era outro contexto, e com pressão completamente diferente. A vida das pessoas realmente corria risco”, explica o historiador.

Mas uma coisa era o mecanismo de censura, que picotava obras e tinha o poder de vetar músicas e discos. A outra era a polícia política. Com o AI-5 em vigor, um indivíduo podia ser intimado para depor e nunca mais voltar para a casa. “Era o Dops que prendia, torturava, interrogava, às vezes podia processar ou não. Às vezes eram sequestros”, observa Marcos Napolitano, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Raul Seixas e Paulo Coelho entram na mira da repressão logo após “Ouro de Tolo” estourar nas rádios, em 1973. Com a popularidade em alta, a dupla passou a fazer passeatas no Rio de Janeiro e a distribuir um gibi-manifesto, “a Fundação de Krig-Ha”…

O documento está anexado na dissertação de mestrado do historiador Paulo dos Santos, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC). Ao TAB, Jotabê Medeiros confirmou que é este o mesmo documento presente no livro. No trabalho acadêmico, PCBR está referendado como “PDBR”, por erro de digitação do autor da tese ou no próprio documento.

Napolitano, porém, chama a atenção quanto à credibilidade dos documentos produzidos pela ditadura. “Não se pode tomar esses documentos ao pé da letra. Eles não eram redigidos apenas para produzir informação, mas para produzir culpa, para jogar um ator político contra o outro. Eles faziam muito isso”, explica. “Já encontrei documentos da repressão que falam que o Caetano Veloso era do Partido Comunista.”

“Fake news” teve início na era do rei do suingue: Simonal

Hoje é sabido que a própria polícia política produzia informações no mínimo questionáveis, graças à abertura desses arquivos e ao trabalho minucioso de órgãos como o da Comissão da Verdade, mas na época, nenhuma informação do que se passava nos interrogatórios era de conhecimento público.

Foi o que aconteceu com Wilson Simonal. Em 1972, ao ser acusado de delatar colegas da cena artística ao Dops, um dos cantores mais populares da música brasileira foi sumariamente “cancelado” pela mídia e pela classe artística.

Hoje considerado uma dos primeiros casos de fake news a circular no Brasil, a história foi publicada pelo jornal satírico “O Pasquim”, com tiragem de 200 mil exemplares, abrangência ínfima se comparada ao que o Facebook tem hoje. “Desagravar Simonal era desagravar a ditadura”, observa o jornalista Ricardo Alexandre, autor da biografia “Nem Vem que Não Tem – A Vida e o Veneno de Wilson Simonal”. “A grande comparação com a era das redes sociais é que os assuntos vão se arrastando uns aos outros. Um caso que não tinha a ver com delação acaba se transformando em delação”.

Elis Regina também caiu em desgraça na mesma publicação, após participar das Olimpíadas do Exército, evento que integrava a Semana da Pátria, em pleno governo Médici (1969-1974). Ela ainda participou de um vídeo publicitário para divulgar o evento: “Nesta festa, todos vamos cantar juntos a música de maior sucesso neste País: o nosso hino. Pense na vibração que vai ser você e 90 milhões de brasileiros cantando juntos, à mesma hora, em todos os pontos do país”, diz a cantora na peça, de acordo com seu biógrafo, o jornalista Julio Maria.

O cartunista Henfil chegou a colocar a cantora em um cemitério de mortos-vivos, em uma charge publicada no jornal. Elis sempre afirmou ter sido intimidada por agentes do Estado para aceitar cantar no evento.

Roberto Carlos

Entretanto, a participação de artistas nos eventos cívicos era mais comum do que se imaginava. Nos anos de chumbo, Roberto Carlos foi condecorado com a Medalha do Pacificador, mas passou incólume ao cancelamento — institucional e midiático.

“Em relação ao Simonal, eu diria que todos, situação ou oposição, governo ou sociedade civil, militares ou artistas, viviam um momento excepcional do Brasil, onde as regras não só eram muito diferentes do que eram ordinariamente, como também podiam mudar a qualquer momento, especialmente a partir de 1968”, observa Alexandre. “É muito difícil cobrar coerência, ou que as pessoas soubessem como agir no calor do momento numa situação como aquela”.

Para o jornalista, no entanto, há alguns pontos que aproximam aquele momento da história do Brasil com o atual tribunal de milhões de juízes anônimos das redes, como aconteceu recentemente com Raul Seixas.

“No caso do Simonal, as pessoas se apropriaram [da suposta informação] para ostentar sua consciência social. Quão horrorizado você se mostrasse publicamente em relação ao Simonal dizia muito sobre sua consciência e sua luta pela liberdade e pelos direitos humanos, independentemente se você estivesse sendo leviano na sua afirmação”, observa. “Hoje, essa construção perversa é muito maior. Hoje você não precisa do Pasquim, você é seu próprio Pasquim. As pessoas se apressam para referendar sua teórica consciência política condenando o Raul”.

Na sua visão, sendo verdade ou não a suspeita sobre Raul, a ditadura mais uma vez manchou uma página da nossa história. “Eu não sei o quanto essa história mexeu na relação entre o Paulo e o Raul, mas se mexeu, já foi um grande desserviço à cultura popular brasileira. E mais, um grande desserviço à vida dessas pessoas”.

Tribuna Hoje



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