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Mundo
05/11/2019 20:00:00

Chile, 2019: Como o 'oásis' de desenvolvimento na América Latina virou cenário de guerra


Chile, 2019: Como o 'oásis' de desenvolvimento na América Latina virou cenário de guerra

Tanques de guerra, toque de recolher, estado de emergência, prédios incendiados, investigações de tortura e dezenas de civis detidos, feridos ou mortos. O cenário assim descrito no Chile parece remontar os tempos mais sombrios da ditadura militar de Augusto Pinochet, de 1973 a 1990. Mas é na verdade a realidade de 2019, vivida pelos chilenos nas últimas semanas de outubro, sob a liderança do governo democrático de Sebastián Piñera.

O que começou com uma manifestação de jovens contra o aumento da tarifa do metrô de Santiago, no dia 7 de outubro, se tornou uma das mais violentas e importantes mobilizações da História recente do Chile. Cerca de 1,2 milhão de pessoas foram às ruas na GrandeMarcha em Santiago há exatamente uma semana.

Milhares de famílias marcharam, incomodadas com a falta de proteção social e inconformadas com as políticas vigentes no país, que estariam tornando insustentável a vida para os mais pobres. Estima-se que 20 pessoas morreram durante o período das manifestações, mais de 1.100 ficaram feridas e outras 1.500 foram detidas pela polícia.

Os protestos chamaram a atenção do noticiário mundial e romperam com a imagem daquele país reconhecido como “oásis” da estabilidade financeira e desenvolvimento econômico em plena conturbada América Latina.

Desde a década de 1990, com a redemocratização, o Chile passou a ser reconhecido como um “caso de sucesso” da região por conta de seus indicadores socioeconômicos, explica o professor Vinicius Vieira, especialista em economia política internacional da FGV.

“Se olharmos o PIB per capita, inflação e índice de desemprego, o Chile é um caso que se destaca na região. E isso se deve por sua liberalização econômica e as vantagens dos mercados globalizados, principalmente nos anos em que o país conseguiu surfar no boom das commodities”, analisa Vieira em entrevista ao HuffPost. “Mas essa eficiência econômica não necessariamente se traduziu em proteção social, pelo que apontam os manifestantes”, completa.

JOSE SAAVEDRA / REUTERS
Policiais detêm manifestante durante protesto em 26 de outubro, em Concepcion, no Chile.

Se o primeiro gatilho para os protestos foi um reajuste de 3,75%, cerca de 30 pesos (R$ 0,17), no preço do transporte público, em um intervalo de dez dias, a desigualdade se tornou a principal queixa dos chilenos nas ruas. 

Para níveis de comparação, em 2018, enquanto o Brasil registrava um crescimento 1%, a economia chilena avançou quatro vezes mais. Lá, o coeficiente de Gini, que é o indicador responsável por medir a desigualdade (quanto maior, mais desigual é o país), foi de 0,45 em 2017. Enquanto isso, o Brasil apresenta o pior quadro da América Latina, com uma taxa de 0,57.

O país-modelo, ainda, tem um nível de desemprego de 7% (no Brasil, beira-se a casa dos 13%) e a inflação encontra-se em torno de 2,4% (em setembro deste ano, a brasileira era de 2,89%).

Como compreender, então, a insatisfação da população que viveu um importante ciclo de crescimento nos últimos anos? 

“Mesmo em um país com crescimento robusto, você ainda tem a insatisfação da população. No momento em que ela se vê sem perspectivas, essa angústia aparece. O pensamento é mais ou menos o de que conquistamos isso até agora, mas e o que vem depois? E os protestos mostram isso”, avalia Vinicius Vieira. 

De acordo com o especialista da FGV, com o fim da ditadura, o Chile adotou o caminho da privatização para tentar resolver algumas de suas questões, como o acesso à educação superior e o sistema de aposentadoria.

“As pessoas estão tendo dificuldades de acessar serviços essenciais como saúde, educação, aposentadoria e até água e energia elétrica”, afirma. 

De fato, um dos principais pontos dos manifestantes é também um dos maiores desafios da economia chilena atual: o seu modelo privado de capitalização da Previdência.

Desde que o sistema atual foi implementado, uma geração de aposentados não consegue receber o montante necessário para custear as suas necessidades. Análises do país mostram que 9 em cada 10 aposentados recebem menos de 60% de um salário mínimo — o que levou o governo da ex-presidente Michelle Bachelet, em 2008, a criar um “pilar solidário” de aposentadoria como forma de garantir benefícios assistenciais aos chilenos mais pobres.

A política do governo socialista, em paralelo com o crescimento econômico do país, reduziu expressivamente a pobreza na época, mas não solucionou o problema. Desde outubro de 2018, Piñera também promete novas alterações na legislação que permitam elevar os níveis da aposentadoria.

“O Chile poderia ter adotado um modelo de abertura comercial, mas mantendo a proteção social no plano doméstico. Isso não foi alcançado. Nenhum modelo econômico é perfeito e de tempos em tempos os seus problemas vêm à tona. Talvez este seja o momento do Chile”, opina Vieira.

Para o professor, além das demandas imediatas da população, as manifestações no Chile abrem espaço para uma discussão ainda mais abrangente:

Desenvolvimento se traduz apenas em crescimento e estabilidade financeira? Ou envolve variáveis mais complexas, como a existência de serviços públicos de qualidade? O histórico chileno nos leva a questionar que modelo de desenvolvimento as sociedades querem.
Como evoluíram os protestos no Chile

Um dos momentos mais críticos da crise recente no Chile foi o pronunciamento do presidente Sebástian Piñera em que ele declarou que o país “estava em guerra contra um inimigo poderoso, implacável, que não respeita nada nem ninguém, e está pronto para usar a violência e a delinquência sem nenhum limite”. 

Ele se referia aos manifestantes que usavam a violência como meio de protesto, mas boa parte da população se sentiu atacada pelo discurso do presidente, que foi considerado insensível às demandas populares. As palavras escolhidas por Piñera foram criticadas dentro e fora das redes sociais, por cidadãos chilenos e seus representantes na política.

Para analistas, ao usar o tom bélico em seu discurso e ordernar a participação das Forças Armadas para reprimir as manifestações, o presidente tomou atitudes que podem ser comparadas ao período da ditadura militar, uma memória ainda não cicatrizada pela sociedade chilena.

“O Chile é um país que tem historicamente uma alta mobilização política por parte da sociedade. Outros presidentes já enfrentaram manifestações em seu governo. Mas, o que agora chama atenção é o nível de violência. O que foi visto na semana passada não existia desde o fim do regime militar. E essa violência, em grande parte por parte do governo, relembrou ao chileno cidadão comum um momento muito conturbado de um processo de redemocratização recente”, explica Denilde Holzhacker, professora de Relações Internacionais da ESPM, em entrevista ao HuffPost.

“Ao colocar tanques na rua, criar estados de exceção, tomar medidas fortes para a imposição da ordem, a atitude do governo foi vista como algo absolutamente fora da curva e deu ainda mais gás para a população descontente”, analisa.

Seja por pressão da sociedade ou por críticas dos próprios políticos, o governo mudou de tom ao se referir às manifestações. Nas redes sociais, Piñera afirmou que havia acolhido “com humildade as legítimas demandas sociais” e as mensagens que os chilenos haviam dado nas ruas.

″É verdade que os problemas estavam se acumulando há décadas e os diferentes governos não foram capazes de reconhecer a situação em toda a sua magnitude. Reconheço e peço desculpas por essa falta de visão”, declarou o presidente.

Após se reunir com partidos da base e parte da oposição, o governo também anunciou uma série de medidas batizada de “Nova Agenda Social” para mediar a crise.

Entre elas, está um aumento imediato de 20% da pensão básica social para os chilenos com mais de 65 anos que não têm aposentadoria ou que fazem parte dos 60% mais pobres da população. O governo também vai liberar mais recursos para programas de complementação da aposentadoria para os contribuintes do fundo de Previdência, que é completamente privado.

O pacote ainda contempla a criação de um seguro que ajude na cobertura de gastos com medicamentos, além de uma renda mínima garantida de 350 mil pesos para todos os trabalhadores e um imposto que taxe os mais ricos e ajude na arrecadação tributária do Estado.

Na última segunda-feira (28), o presidente fez uma reforma ministerial e afastou oito de seus ministros, entre eles algumas das figuras mais próximas a ele, como os ministros do Interior e da Fazenda.

“Esta equipe terá a missão de escutar e abrir diálogo para um Chile mais justo”, disse Piñera na cerimônia de posse dos novos representantes.

Mesmo após as mudanças, multidões voltaram às ruas no país. Para os especialistas, o futuro do governo de Piñera pode estar em risco.

Uma pesquisa realizada pelo instituto Cadem mostrou que a aprovação do presidente caiu para 14% e foi considerada a taxa mais baixa de popularidade de um presidente nos últimos 30 anos.

De acordo com Vinicius Vieira, a resposta imediata com a agenda de reformas é um primeiro passo para apaziguar os ânimos da população. “Ele [Piñera] não quer que a responsabilidade dos protestos custe o seu próprio mandato. É uma estratégia clássica dos políticos”, analisa.

Para Denilde Holzhacker, o bloco de políticas da “Nova Agenda Social” não é suficiente para trazer as mudanças almejadas pela população. 

“O governo vai ter que sinalizar como vão ser aprofundadas essas discussões. E essa precisa ser uma resposta por vias democráticas. A situação do Piñera ainda fica muito incerta”, observa a professora.

A linha do tempo das manifestações do Chile 

 

07 de outubro:

Acontece a primeira manifestação. O governo do Chile anunciou um reajuste de 3,75%, cerca de 30 pesos (R$ 0,17), no preço da tarifa do metrô de Santiago. Em protesto, um grupo de manifestantes decidiu pular as catracas das estações de trem e embarcar nos vagões sem pagar a passagem. A revolta protagonizada por jovens e estudantes foi filmada pelos próprios manifestantes, e os vídeos foram compartilhados nas redes sociais como forma de marcar posição contra o aumento da tarifa.

 

17 de outubro:

Os atos contra o aumento ganham força no país. O metrô de Santiago foi completamente fechado. Os manifestantes quebraram portões e arrancaram catracas. Em resposta, a polícia revidou com bombas e gás lacrimogêneo.

 

18 de outubro:

O então ministro do Interior, Andrés Chadwick, decidiu invocar a Lei de Segurança do Estado contra quem “causar danos materiais ao metrô de Santiago e, ao mesmo tempo, impedir seu funcionamento normal” para tentar conter a crise.

Os conflitos nas ruas deixaram mais de 150 policiais feridos, cerca de 50 viaturas danificadas e mais de 40 estações de metrô com estragos. Mais de 300 pessoas já haviam sido detidas.

 

19 de outubro: 

O presidente Sebastián Piñera decretou estado de emergência em algumas regiões do Chile.

Após o decreto, ele nomeou o general Javier Iturriaga del Campo como chefe da Defesa Nacional, e forças militares passaram a patrulhar as ruas das cidades consideradas mais conflituosas pelo governo.

Os protestos continuaram. Ataques com uso de fogo ocorreram contra um prédio da companhia de eletricidade Enel, outro edifícios do Banco do Chile e em várias estações do metrô. Talvez em um dos momentos mais tensos da manifestação, um grupo ateou fogo na sede do jornal El Mercurio, em Valparaiso, e 40 pessoas precisaram ser retiradas do local.

Piñera anunciou que iria suspender o reajuste da tarifa de transporte. Em seguida, o general del Campo anunciou um toque de recolher que limitava a presença de pessoas nas ruas entre as 19h e às 6h da manhã. 

 

20 de outubro: 

Sebástian Piñera fez o seu pronunciamento mais contundente e declarou que o país “estava em guerra contra um inimigo poderoso” ao se referir aos manifestantes.

 

22 de outubro:

O governo muda de tom ao se referir às manifestações. Nas redes sociais, Piñera afirmou que havia acolhido “com humildade as legítimas demandas sociais” e as mensagens que os chilenos haviam entregue nas ruas.

 

25 de outubro:

Cerca de 1,2 milhão de pessoas foram às ruas de Santiago naquela que foi nomeada de A Grande Marcha. A movimentação pacífica cobriu de pessoas as avenidas da capital, principalmente na região do palácio presidencial. A convocação para o evento começou entre grupos das redes sociais por meio da #MarchaMasGrandedeChile.

 

26 de outubro:

Em resposta, Piñera anuncia a reforma ministerial. No Twitter, ele afirmou que os seus ministros estariam colocando os cargos à disposição para que se formasse uma nova equipe que “representasse a mudança e liderasse os novos tempos”.

 

28 de outubro: 

O presidente anunciou o afastamento de oito de seus ministros, entre eles algumas das figuras mais próximas, como os ministros do Interior e da Fazenda.

https://www.huffpostbrasil.com/



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