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18/09/2019 14:00:00

Verdades e mentiras sobre os probióticos, os micróbios vivos que todos querem tomar


Verdades e mentiras sobre os probióticos, os micróbios vivos que todos querem tomar

Probiótico significa pró-vida. Uma hipérbole linguística que fez com que os negócios em torno do termo se antecipassem à pesquisa, em prol da boa saúde dos resultados contábeis de quem os produz. Hoje, além de no leite e no iogurte, é possível encontrar xampus, loções para barbear, desinfetantes, soros, cosméticos faciais, comprimidos para a caspa e cremes dentais que proclamam conter micróbios vivos que velam pela boa saúde da pessoa.

“O problema é que tudo está sendo colocado no mesmo saco: os usos respaldados por ensaios clínicos e outros que não são", explica o dr. Francisco Guarner, presidente da Sociedade Espanhola de Probióticos e Prebióticos (SEPyP) e referência mundial nesta área. “O fabricante que se esforçou para demonstrar que seu produto representa um benefício quando administrado nas quantidades apropriadas está nas prateleiras das farmácias na mesma altura que outros compostos dos quais não se sabe o que têm dentro, porque os as empresas que os lançam não se preocuparam em conduzir um estudo sobre sua eficácia”, alerta o pesquisador sênior do Instituto de Pesquisa do Hospital Universitário Vall d´Hebron, em Barcelona. "Isso teve como resultado que quem estava pesquisando parou de fazê-lo", lamenta.

O principal problema é que não são medicamentos

Como consequência desse “vale tudo”, muitos supostos probióticos (que não apresentam nenhuma comprovação de seus benefícios) ficam com as glórias (a credibilidade e o dinheiro), enquanto os que estão respaldados em estudos dignos de crédito são postos sob suspeita (e ainda por cima levam a fama…). "Há uma grande necessidade de novos ensaios bem projetados e conduzidos para explorar o potencial na suposta melhoria da saúde que eles propiciam para pessoas saudáveis", reconhecia já em 2016 Oluf Pedersen, autor de uma meta-análise publicada na revista Genome Medicine, que afirma que dois dos probióticos mais utilizados pela indústria alimentícia (os lactobacilos e as bifidobactérias) não faziam efeito na flora intestinal de indivíduos sem patologias, o principal grupo ao qual sua publicidade é direcionada.

Mais recentemente, em 22 de outubro de 2018, The New York Times lembrou em um artigo intitulado The Problem With Probiotics, que, por serem suplementos alimentares, estão regulamentados com muito menos rigor do que os medicamentos, e por isso não precisem demonstrar sua eficácia para serem comercializados, mas apenas sua inocuidade. Como consequência desta laxidão normativa, alguns fabricantes basearam sua estratégia de negócios em oferecer altas margens de lucro a farmacêuticos e a outros canais de vendas, em vez de difundir o efeito de suas bactérias quando comparadas ao placebo. O poderoso marketing criado por essa indústria dinâmica fez com que os consumidores se apaixonassem por probióticos (que, além de serem integrados aos alimentos, são vendidos em pílulas, xaropes ou envelopinhos), a ponto de, segundo a Forbes, quase quatro milhões de norte-americanos os consumirem nos dias de hoje, o que movimenta 45 bilhões de dólares (cerca de 180 bilhões de reais) e com um prognóstico de crescimento do mercado global de 7%.

E não parecem ter efeitos em pessoas saudáveis

Paralelamente ao bom progresso do setor, mais de 16.000 pesquisas científicas tentaram elucidar nos últimos 30 anos se seu consumo tem reflexo na qualidade de vida dos usuários. Segundo explica o dietista-nutricionista Julio Basulto, "em janeiro de 2016, o NHS Choices, o maior portal de saúde do Reino Unido, revisou com minúcia os estudos existentes para separar o joio do trigo. Em resumo, pode ser que os benefícios comprovados envolvam um pequeno número de distúrbios relacionados ao sistema digestivo, como a diarreia do viajante, a síndrome do intestino irritável e a diarreia em crianças que tomaram antibióticos, mas sua eficácia não foi ratificada para a maioria das condições para os quais também são prescritos, como o fortalecimento do sistema imunológico, a perda de peso, a prevenção de eczema ou dermatite atópica e o tratamento de vaginose bacteriana, da diarreia crônica, da doença de Crohn ou da colite ulcerativa, da mastite ou dor na mama, do espectro autista, da doença hepática, da asma... "Quanto ao iogurte (o principal alimento fermentado, ou seja, com micróbios amigáveis ), o NHS Choices considera que pode ser bom para as pessoas intolerantes à lactose, e também que é possível que certas cepas de bactérias probióticas atenuem os sintomas da síndrome do intestino irritável ou da colite ulcerativa, embora os pesquisadores concordem que "são necessários mais estudos para recomendá-los".

Muitos especialistas traçam uma linha divisória entre as melhoras que produzem nos pacientes, sobre as quais existem alguns ensaios clínicos bem projetados, e as que supostamente operam em pessoas que gozam de boa saúde, caso em que as evidências para recomendar seu uso são mais difusas. A teoria subjacente é que, para estas últimas, tomar um probiótico faz o mesmo sentido que um antibiótico quando não se está doente. “Pode ser um complemento a um tratamento, mas não a solução em si, pois isso requer ir à raiz do problema, que pode estar tanto em uma má alimentação como em um estresse excessivo ou estilo de vida sedentário", intervém o dietista-nutricionista Jesús Sanchis, membro da Academia Espanhola de Nutrição e Dietética.

Sobre como comemos: "O que se vê, de qualquer forma, é que o tipo de alimentação que temos hoje não é saudável para a microbiota intestinal, pois carece de fibras e polifenóis", enfatiza esse especialista, coautor do livro Alimentación Prebiótica (Editora Plataforma, sem tradução para o português). Assim, para evitar patologias digestivas, antes do probiótico é preciso ter boas diretrizes na mesa. E, praticamente, desde o primeiro minuto de vida. "A janela de oportunidade para a microbiota [quando nossa flora é formada, o que determinará muitas doenças futuras] vai da gestação até os três anos de idade, e inclui o parto, o tipo de aleitamento [o ideal é que seja o materno] e os primeiros alimentos", conclui Sanchis.

As bactérias que fazem bem para uns talvez não sirvam para outros

Dois estudos publicados na revista Cell no ano passado jogaram mais lenha na fogueira. No primeiro, pesquisadores do Instituto Weizmann de Ciências de Israel comprovaram que as bactérias externas fornecidas por probióticos não têm afeito em grande parte da população. No segundo artigo, os mesmos cientistas procuraram analisar como eles afetam o intestino quando tomados para combater o efeito de antibióticos de amplo espectro: assim, observaram que o tratamento interferia no retorno ao normal da microbiota do paciente em vez de acelerar sua recuperação, como inicialmente se acreditava.

Ambos os ensaios foram altamente criticados pela Associação Científica Internacional de Probióticos e Prebióticos (Isaap, na sigla em inglês) por causa de suas lacunas metodológicas. Foi até mesmo mencionado um possível conflito de interesses dos autores, pois estão ligados a uma empresa privada que promove o mesmo tipo de abordagem personalizada aos probióticos sugerida pelos dois artigos científicos da Cell, dos quais parece deduzir-se que a compra de qualquer produto probiótico no supermercado que não se encaixe no microbioma específico do consumidor é desperdiçar dinheiro e perda de tempo.

Francisco Guarner, como representante da comunidade científica que trabalha nesse âmbito, menciona outras duas objeções às pesquisas. A primeira é que, embora os probióticos não modifiquem a microbiota, não se deve concluir que eles não trabalham dentro do intestino. E cita como exemplo o iogurte: “Ainda que as bactérias vivas sejam aniquiladas pelo ácido no estômago, isso não impede que se abram e soltem uma enzima chamada lactase, que ajuda a digerir a lactose para os cerca de 15% de espanhóis que têm problema para decompor o açúcar do leite”. O critério da Organização Mundial de Saúde (OMS) e da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) “não é que o probiótico fique aderido à mucosa intestinal, mas que faça efeito”, recorda Guarner, que também preside o Consórcio Internacional do Microbioma Humano (IHMC), um organismo no âmbito da Comissão Europeia.

Mas não faltam nutricionistas alegando que mesmo esse suposto efeito probiótico do iogurte (que, em teoria, permite digerir a lactose em pessoas que não podem tolerá-la) não obedece aos microrganismos do alimento, mas, simplesmente, ao fato de que um copo de leite tem 200 ml e o iogurte tem 125 ml, ou seja, quase a metade, lembrando também que o iogurte é tomado mais devagar. No entanto, embora haja poucas evidências de que os probióticos tenham um impacto importante na estrutura geral das comunidades microbianas intestinais de pessoas saudáveis, além do aumento transitório da cepa específica consumida, algumas evidências sugerem que poderiam ter efeitos benéficos sem a necessidade de colonizar o trato gastrointestinal ou alterar posteriormente a composição da microbiota fecal. A segunda objeção de Guarner é que os autores dos estudos da Cell não administraram probióticos ao mesmo tempo em que os participantes começavam a se tratar com antibióticos, como é habitual; administraram-nos depois, o que poderia explicar que não tenham surtido efeito na hora de reconstituir a flora.

O fato: será uma das próximas grandes revoluções

O crescente descrédito que afeta os probióticos, ecoado por prestigiosos veículos como BBCCNN e The Guardian, ocorre porque não se exigem das empresas produtoras os mesmos requisitos que são exigidos dos cientistas (isto é, que sejam realmente microrganismos vivos; que eles estejam em quantidades adequadas; que sejam caracterizados por gênero, espécie e cepa; que seu padrão seja depositado numa coleção internacional para que o fabricante tenha condições de garantir que a cepa não evolui e que continua sendo sempre a mesma que figura na coleção; que conte com estudos duplo-cegos demonstrando sua eficácia em pessoas, não apenas em animais...). A desconfiança também coincide, de forma paradoxal, com outras novas linhas de investigação muito promissoras: até o momento, a imensa maioria dos estudos realizados com os probióticos se concentrou em processos agudos (diarreias e constipação), por serem muito mais rápidos e consideravelmente mais baratos. Por outro lado, existem pouquíssimas pesquisas de longo prazo por serem mais difíceis e caras. Segundo os especialistas nesse campo, pode ser que nessa trajetória se encontre o futuro.

De fato, cada vez mais especialistas concordam que algumas das pesquisas mais promissoras concentram-se na microbiota intestinal. De forma muito resumida, eles começam a vislumbrar que muitas doenças associadas ao estilo de vida ocidental têm como padrão comum uma inflamação crônica e defeitos na microbiota, o que poderia abrir espaço para probióticos novos, muito mais específicos em função do microbioma individual, que possam substituir os probióticos universais ou de tamanho único atuais.

Segundo Guarner, existem linhas de pesquisa, muito interessantes sobre a relação que os microrganismos que cada pessoa aloja em seu intestino —basicamente bactérias, mas também vírus, fungos e leveduras, pesando mais de um quilo no total— mantêm com a regulação do sistema de defesa e a abordagem dos diversos tipos de câncer e melanomas; mas também com o tratamento da obesidade e do sistema nervoso central. O presidente da SEPyP se refere, por exemplo, a um estudo realizado por cientistas canadenses com um grupo de pacientes com intestino irritável que também apresentavam um quadro de depressão. Ao avaliar a intervenção, eles perceberam que o probiótico que utilizaram foi mais efetivo para aliviar a patologia mental do que para diminuir a dor abdominal. Por isso, após a publicação do estudo numa reconhecida revista científica, a pesquisa foi replicada em pessoas com depressão, mas sem intestino irritável, e os resultados foram igualmente positivos.

A pergunta é: se esses defeitos na microbiota forem corrigidos, o prognóstico de muitas doenças vai melhorar? “No momento não podemos saber”, responde Guarner, “já que há muitos dados em modelos animais, mas poucos estudos em humanos”. Ou seja: embora o conhecimento que temos do microbioma ainda seja muito escasso, seu potencial é revolucionário. Enquanto esperamos a chegada desse futuro esperançoso, uma coisa parece clara: fazer pesquisa aplicada (isto é, que o departamento de marketing utilize termos pseudocientíficos como argumento de venda) não é o mesmo que aplicar em pesquisa para que o setor tenha credibilidade.

El País



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