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Especial
06/08/2019 17:00:00

'Brasil prende muito e prende mal', diz especialista em direito penal


'Brasil prende muito e prende mal', diz especialista em direito penal

A cidade de Altamira na região sudoeste do Pará ganhou o noticiário nacional nos últimos dias por conta de um massacre que deixou 62 mortos e desnudou novamente a crise no sistema penitenciário brasileiros.

Novo capítulo da briga entre facções criminosas pelo poder nos presídios, o episódio rendeu cenas de selvageria ganharam o mundo. O número de vítimas foi tão elevado que o IML da cidade não teve capacidade para armazenar o número de mortos que foram condicionados em um caminhão frigorifico.

O mau cheiro e o estado de decomposição dos corpos fizeram com que muitas famílias simplesmente desistissem de velar os seus mortos. A maioria –cerca de 120-- dos 206 detentos do local era de presos provisórios que ainda não haviam sido julgados.

O levantamento é da Defensoria Pública do Pará e não inclui a situação jurídica dos 62 internos mortos. Em entrevista à BBC Brasil, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) resumiu a realidade do sistema penitenciário brasileiro a uma “crônica de mortes anunciadas, de crises anunciadas”. 

Para entender melhor o problema o Yahoo! Notícias conversou com o advogado criminalista Augusto de Arruda Botelho. Botelho é um dos fundadores do Instituto Direito de Defesa (IDDD) e conselheiro do Human Rights Watch e do Innocence Project no Brasil. Ele falou um pouco das causas da superlotação nos presídios, detalhou o perfil do preso brasileiro e apontou medidas que poderiam amenizar o problema.

Yahoo Notícias: Do massacre ao Carandiru, passando por Pedrinhas até a recente tragédia em Altamira o sistema prisional brasileiro tem um longo histórico de violência. Quem são os principais fatores responsáveis por essa matança?

Augusto de Arruda Botelho: 
Precisamos voltar um pouco no tempo. Não dá para comparar acontecimentos de 15 anos atrás com o que acontece hoje. Tivemos no passado na década de 1980 e 1990 rebeliões causadas por más condições e reinvindicações de presos que não foram atendidas. Atualmente as rebeliões são muito mais ligadas a disputas de poder entre facções criminosas que dominam o sistema penitenciário brasileiro. As rebeliões hoje em dia até tem um caráter de reinvindicações de direitos, mas estão muito mais ligadas a disputa de poder. Essa é a diferença do passado para o momento atual. Só que por trás de tudo isso temos o próprio formato do sistema de justiça criminal brasileiro. É um formato propenso a gerar sempre no preso o sentimento de revolta. Esse sentimento passa pelas condições totalmente insalubres dos presídios. Passa pela falta de higiene.... Pela superlotação. Outra questão é o desrespeito a direitos e garantias fundamentais do próprio preso. Temos desde violência e abusos cometidos dentro do sistema penitenciário como desrespeito ao trâmite processual desses sujeitos. Um exemplo típico é o preso que não tem benefícios da lei analisados em tempo hábil. Então o sujeito cumpre um sexto de pena e faz os pedidos de progressão para o regime semiaberto, por exemplo, e esse pedido demora anos para ter uma resposta. Obviamente isso gera um sentimento de revolta nos presos e esse sentimento pode ser sentido no cotidiano do sistema prisional.

Yahoo Notícias: Qual é o perfil do preso brasileiro?

Augusto de Arruda Botelho: O perfil básico do preso hoje em dia é de um réu primário, jovem, sem instrução e está detido por um crime sem violência. Os crimes que mais prendem hoje em dia são crimes patrimoniais. Dentre eles você tem o furto que é um crime sem violência e o tráfico de drogas que é um crime sem violência direta. Esse é o perfil do preso que temos hoje em dia. Muitas vezes esse jovem primário e sem instrução que foi pego com uma pequena quantidade de entorpecente é o que mais sofre. Esse cara vai virar massa de manobra e mão de obra praticamente escrava do crime organizado. Aquela máxima de que você entra no presídio na escola e sai na graduação é uma verdade absoluta. Não é um ditado vazio. Se você tem um jovem com 18,19,20 anos primário que entra no sistema prisional e cumpre uma pena de dois ou três anos vai sair praticamente um PHD no crime.


Yahoo Notícias: Por quais motivos tanta gente segue presa no Brasil sem julgamento?

Augusto de Arruda Botelho: Temos vários fatores para explicar esse problema. O ponto número um é que o Brasil prende muito e prende mal. O ponto dois é que temos um número elevadíssimo de presos provisórios que são aqueles presos que não tiveram condenação. Cerca de 35% dos presos do sistema prisional é formada por pessoas que não foram condenadas ainda. Qual a necessidade de deixar presas pessoas que ainda não foram condenadas? É preciso analisar caso a caso. Você também tem a questão de termos uma mentalidade punitivista grave no Brasil de achar que a resposta para o aumento da criminalidade se dá apenas por prisão e não por penas alternativas. Essa é uma questão de mentalidade mesmo do legislador, da opinião pública e muitas vezes do sistema judiciário de que essa é a única solução. E não é. Existem soluções mais baratas e eficazes para combater e se punir crimes. Então colocamos essas pessoas com o perfil que te contei na prisão e isso gera todos esses problemas que enumerei e o aumento da população carcerária.

Yahoo Notícias: Quais soluções seriam mais baratas e eficazes para o problema do sistema prisional?

Augusto de Arruda Botelho: 
Algumas delas já vem sendo adotadas. A principal delas para mim é a audiência de custódia. Esse é para mim o principal avanço civilizatório na justiça criminal nas últimas décadas. É o mecanismo mais correto de verificar 24h depois da prisão da pessoa que ela foi precisa cumprir pena em regime fechado ou não. Sem esse estigma de que audiência de custódia coloca criminosos na rua. Isso é uma mentira absoluta. As pessoas que repetem isso nunca leram um estudo e não tem a menor ideia do que estão falando. A audiência de custódia é o maior avanço civilizatório do sistema criminal. O que temos de fazer é incentivar e aumentar o apoio as audiências de custódia. É uma coisa que não custa nada para fazer e economiza milhões para o Estado. Cada preso que deixa de aguardar na prisão o julgamento economiza em média R$ 3 mil por mês para o Estado de São Paulo por exemplo. Então é só fazer a conta. 

Yahoo NotíciasO senhor é um dos grandes entusiastas das audiências de custódia. Recentemente ela foi criticada pelo presidente. Explique para uma pessoa leiga como funciona realmente esse mecanismo jurídico?

Augusto de Arruda Botelho: O que acontecia na prática antes da audiência de custódia. O sujeito era preso hoje por um crime x. Vamos imaginar que ele foi preso por tráfico de drogas. O entendimento do momento da prisão foi que ele era um traficante. Essa pessoa passaria em São Paulo por uma audiência... O juiz olharia na cara dele muitas vezes em dois, três e até seis meses de prisão. Quando então o juiz olhando para cara do preso poderia perceber que esse é um caso de um usuário e não de tráfico e colocaria ele em liberdade. Quem vai devolver esses meses para essa pessoa que ficou presa injustamente e desnecessariamente? O que a audiência de custódia faz é antecipar para em até 24h do momento da prisão o contato pessoal entre o detido e juiz para que o juiz possa ver não se ele é culpado ou inocente. A audiência de custódia não é isso. Ela primeiro serve para verificar se o preso foi maltratado ou sofreu algum tipo de tortura na abordagem policial –infelizmente isso ainda é comum no nosso país. Ela também serve para que por meio de perguntas específicas o juiz analisar se a pessoa precisa responder ao processo presa ou não. Ele é primário? Tem bons antecedentes? Praticou um crime sem violência? Então é natural que possa responder o processo solto. A pessoa é reincidente? Tem vários problemas? Vai responder o processo preso. O que a audiência de custódia faz é antecipar essa análise pessoal do juiz com o preso para saber se ele precisa de responder o processo preso ou não. Não se ela é culpada ou inocente. Então dizer que a audiência de custódia coloca livra milhões de bandidos na cadeia é errado. Essa pessoa sequer está condenada. Como chamar ela de bandida? 

Yahoo Notícias: O ministro Gilmar Mendes fez questão de prestar solidariedade as famílias dos presos mortos em Altamira. Já o presidente Jair Bolsonaro se limitou a dizer que deveriam perguntar sobre as vítimas dos presos que morreram. São duas visões bem distintas do problema. Qual tipo de pensamento predomina no sistema judicial brasileiro?

Augusto de Arruda Botelho: Infelizmente é o pensamento punitivista. E isso vem aumentando porque o Judiciário influenciado equivocadamente pela opinião pública continua entendendo que a melhor resposta ao crime é a punição pura e simples. Essa declaração do presidente é extremamente infeliz porque se você pegar o número de presos em Altamira... Muitos deles sequer tinham sido julgados. Como se pode falar em vítimas dos presos mortos se existiam muitos que sequer tinham sido condenados lá? Como fazer essa generalização? Essa generalização típica do atual presidente da República é extremamente perigosa.

Yahoo Notícias: Neste ano o governo de São Paulo anunciou a intenção de privatizar presídios. Qual a sua opinião sobre a medida?

Augusto de Arruda Botelho: Eu sou contra a privatização de presídios por um motivo bem simples. A privatização pressupõe o lucro. Do ponto de vista econômico a pessoa participa de um processo desses para ter lucro. Não vejo nada de errado em privatizar uma série de setores da economia pública. Não vejo problema na privatização. Mas, lucrar com presídios significa pressupor o aumento no número de presos. É uma lógica de hotel. Se eu não tiver hospede eu não vou ter receita. Você lucrar com o aumento de número de presos é antagônica a política de desencarceramento que eu defendo. Minha posição não é ideológica. É por princípios.

Yahoo Notícias: A maioria dos especialistas em uníssono repetem que o sistema prisional brasileiro está em crise faz alguns anos? Existe solução?

Augusto de Arruda Botelho: Entendo que além da audiência nós poderíamos ter a aplicação de uma lei extremamente bem-feita e cuidadosa que é a que prevê as medidas cautelares alternativas a prisão como prisão domiciliar, monitoramento eletrônico e proibição de frequentar certos lugares. Curiosamente essa lei não pegou. Aqui no Brasil tem lei que pega e que não pega. A lei das medidas cautelares não pegou. Os juízes não aplicam... 

Yahoo Notícias: O senhor é especialista em direito penal. O código penal brasileiro é eficiente? Precisaria ser reformado? 

Augusto de Arruda Botelho: 
O código penal brasileiro já é bom. Não precisa de lei nova. Não precisa de nenhuma medida legislativa... Nada. Se aplicarmos corretamente as leis que já temos já daríamos conta do recado.

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