A instalação da Ditadura Militar faz 55 anos neste domingo (31) sob o polêmico pedido do presidente Jair Bolsonaro (PSL) para que o Exército comemore o golpe do dia 31 de março de 1964. A data deu início a um período marcado pela tortura e morte de vários brasileiros, entre eles muitos alagoanos.

Segundo o relatório da Comissão da Verdade de Alagoas, seis alagoanos morreram e três até hoje estão desaparecidos. Mais de 100 pessoas foram feitas presas políticas, entre elas crianças. Além disso, há um longo histórico de perseguições, censura e demissões de quem manifestasse críticas ao regime.

A ordem de comemoração do golpe teve várias recomendações contrárias, com pedidos de órgãos como o Ministério Público Federal (MPF) em Alagoas, mas foi ignorado pelo Exército, que realizou uma cerimônia nessa sexta-feira (29) em Maceió para lembrar o golpe de 1964.

Jayme Miranda: torturado e morto

 

O que pode até ser uma comemoração para alguns, é dor para outros. Como é o caso dos familiares do jornalista e advogado alagoano Jayme Miranda, desaparecido em 1975. Segundo o neto Thyago Miranda, Jayme foi sequestrado, torturado e morto em um campo de extermínio do Exército da capital fluminense. Anos depois, a família não conseguiu descobrir onde estavam os restos mortais e enterrá-los.

No documentário 'Memória de Sangue - Jayme Miranda, um lutador social'  você pode conferir mais sobre a vida do jornalista

 

Thyago contou ao Cada Minuto que o relatório da CIA (agência de investigação norte-americana) relacionava o general Ernesto Geisel, presidente do Brasil entre 1974 e 1979, às execuções. “Existe um procedimento investigatório aberto pelo MPF em São Paulo. Eles recolheram junto aos arquivos públicos documentos que fazem menção ao Jayme e realizaram oitivas com agentes que supostamente estariam envolvidos em seu sequestro, tortura e assassinato”, explicou Thyago.

A família afirma que tem algumas novas informações e pistas dos envolvidos de executar Jayme e mais nove integrantes do Comitê Central do  PCB (Partido Comunista Brasileiro). “Esses integrantes ficaram contra a luta armada por entender e acreditar que deveriam isolar a ditadura militar politicamente e fazer a construção junto às massas de trabalhadores para que houvesse a derrubada da ditadura”, diz.

Para Thyago, a fala do presidente aponta para um versão falsa levantar de que só morreram “terroristas”. “É um escárnio total”, afirma.

Segundo ele, o presidente incentiva apologia a quebra da ordem constitucional, o que deve ser repelido. “Isso sem falar nos crimes cometidos por uma minoria que se valeu de ‘uma carta branca’ para estuprar, torturar, matar, ou seja, cometeram todo tipo de crime e violações dos direitos humanos no país. Volto a enfatizar uma minoria, porque, segundo o relatório da CNV, pouco mais de 300 agentes foram apontados como infratores durante o período de ditadura militar”, afirmou o neto.

Os restos mortais de Jayme nunca foram encontrados, mas o neto afirma que a memória dele permanece intacta dentro do coração da família. Thyago lembra que Jayme sempre foi um homem presente e que possui uma história de vida inspiradora.

“Na década de 50 ele tinha duas profissões: advogado e jornalista; era fluente em 4 idiomas e poderia ter tido uma vida muito confortável nos moldes tradicionais. No entanto, ele abriu mão de tudo para lutar pelos menos favorecidos do nosso país”, afirmou Thyago.

Impunidade no Brasil

Mesmo com a dor presente até hoje e sem notícias dos restos mortais do alagoano, o neto de Jayme afirma que a família nunca quis vingança, mas sempre lutou por justiça. O desejo dele é que as pessoas que cometeram os crimes, não só contra Jayme, mas com outros brasileiros, tivessem um julgamento justo, dentro do processo legal. Porém, segundo ele, o direito foi negado.

“Varreram para debaixo do tapete o que ocorreu nos porões da ditadura. A tendência é que se volta a repetir os mesmos erros e discursos. Na Argentina e no Chile, por exemplos, criminosos foram presos e condenados; no Brasil saíram impunes”, completa.

Ex-militar não aprova a ditadura

Um ex-militar alagoano (que preferiu não ser identificado) ainda lembra da censura que sofreu na época da ditadura.  O ex-militar que hoje tem 82 anos não esqueceu de um dos momentos mais marcantes para o povo.

O ex-militar conta que se afastou do Exército Brasileiro antes de ser instalada a ditadura no país, mas contou à reportagem que a censura foi um dos pontos mais delicados da época.

“Sempre gostei de música, e nessa época eu tinha que escolher que música ouvir. Se eu colocasse alguma canção que desse a entender que era contra o governo, eu e minha família corríamos perigo”, disse.

Além das músicas que eram censuradas, ele contou que as pessoas não podiam conversar em uma mesa de um restaurante, por exemplo, sobre o governo.

Apesar de ser ex-militar, o alagoano garantiu não concordar com a ditadura e afirmou que os 21 anos (tempo que durou o regime) foram marcados por dor, medo, direitos violados e violência.

“Saber que esse tempo acabou trouxe muito conforto para todos nós. Lutamos por um país mais justo e igual. Famílias perderam membros, crianças perderam pais, esposas perderam maridos. Fomos censurados e calados. Por qual motivo devemos relembrar casos assim?”, questionou o ex-militar.

Comissão da Verdade

Carregando o nome de Jayme Miranda, a Comissão Estadual da Memória e Verdade entregou o relatório completo em 2017, após quatro anos de investigação. O relatório traz o nome dos seis alagoanos que morreram vítimas de ações do regime militar brasileiro. Três seguem desaparecidos e seus corpos nunca foram encontrados.

Ao todo, foram 64 depoimentos colhidos de sobreviventes e familiares de vítimas. A colheita de depoimentos aconteceu nas cidades de Maceió, Pariconha, São Paulo e Porto Alegre.

O relatório também traz a informação que a Comissão identificou a ocorrência de 156 alagoanos residentes no estado que foram presos políticos no período analisado, incluindo três crianças.

Sobre os parlamentares e prefeitos cassados, a Comissão identificou a cassação de 16 Deputados Estaduais, cinco Deputados Federais, um prefeito e seis vereadores no Estado de Alagoas.

Já sobre os advogados alagoanos, foram 10 presos que se destacaram na defesa de presos políticos. A comissão também identificou 15 políticos alagoanos que foram presos.

Também foram constatados em logradouros, prédios públicos e monumentos, no Estado de Alagoas, a permanência de registros religiosos a dirigentes e agentes da ditadura.

Recomendações não foram atendidas

O relatório mostra que a Comissão Jayme Miranda fez algumas recomendações diante dos resultados parciais obtidos e da necessidade de avanços. As recomendações foram feitas ao Governo do Estado, ao Município de Craíbas, à Câmara de Vereadores, à Assembleia Legislativa de Alagoas, à Câmara de Vereadores de Feliz Deserto, Pilar e Pariconha.

Conforme explicou Delson Lyra, um dos integrantes da comissão, as recomendações não foram atendidas.

“As recomendações que dependem de órgãos públicos, que nós saibamos, nenhuma foi atendida. Não temos condições jurídicas para que se cumpra e, com o encerramento do trabalho da comissão, isso parou”, ressaltou Delson.

O presidente Jair Bolsonaro não considera o houve no dia 31 de março de 1964 como um golpe, e diz que a sociedade naquele momento se uniu com militares para “livrar o país do comunismo”. Entretanto, não há qualquer evidência histórica que aponte que o Brasil esteve próximo de adotar o modelo socialista.

À época do golpe, o Brasil vivia uma democracia e era governado por João Goulart (que era vice e assumiu após a renúncia de Jânio Quadros, em 1961).

O advogado e professor Delson Lyra refuta a tese defendida pelo presidente e diz que não há o que comemorar na ditadura, já que o período foi considerado uma barbárie.

“As Forças Armadas querem comemorar o quê? Morte, tortura, violações dos direitos de milhares brasileiros que não fizeram absolutamente nada que justificasse o tratamento que receberam?”, finalizou.