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História
31/03/2019 10:00:00

“1964 desconstruiu um país de todos”

Cláudio Jorge, professor universitário e historiador, traz um contexto sobre as “comemorações devidas” à “ditadura civil-militar”


“1964 desconstruiu um país de todos”

O presidente Jair Bolsonaro (PSL) determinou aos quartéis que celebrassem o golpe de 1964. A informação foi passada à imprensa pelo porta-voz general Otávio do Rêgo Barros no último dia 25, mas em entrevista ao Valor Econômico, o capitão reformado do Exército recuou e disse querer “rememoração” ao período. Rêgo Barros informou que as comemorações seriam “aquilo que os comandantes acharem dentro das suas respectivas guarnições e dentro do contexto em que devam ser feitas”. Para o historiador Cláudio Jorge Morais, a ordem “é uma insensatez”.

Tribuna Independente – Como o senhor vê a determinação do presidente aos quartéis para celebrarem o golpe de 1964?

Cláudio Jorge – É uma insensatez. A gente pode, sobretudo, ter uma perspectiva sobre a produção da História, mas não podemos negá-la. A História, diferentemente da Filosofia, é feita a partir de uma materialidade documental. Não se produz História porque quer, ela é construída a partir do fato construído e, sobretudo, do fato pesquisado e estudado. Então, não tem o que se comemorar em relação ao golpe de 1964 e, ao mesmo tempo, não tem como negá-lo. Se você pega, por exemplo, João Goulart, ele tem uma inserção política legítima e quando ele, por sua vez, constrói uma política, a partir do populismo, mas com anseio social, a extrema-direita do país – pois foi um golpe civil-militar – resolve silenciá-lo das relações de poder no Brasil. O golpe de 1964, que durou 21 anos, tanto remete ao absurdo que foram as torturas, mas foi também um momento muito específico da História brasileira, que é a montagem efetiva do sistema capitalista no Brasil. Não foi apenas um golpe no sentido de uma concepção de sociedade, não foi apenas sob a perspectiva de quem são os atores desse poder no Brasil, pelo contrário. Foi um golpe que trouxe ao Brasil uma forma de sociedade que tem como sujeito efetivo a perspectiva norte-americana de produtividade.  E, sem dúvida alguma, nesse contexto, a própria produção da historiografia vai analisar concretamente, como o filósofo José Paulo Neto em ‘A pequena história da ditadura no Brasil’, todo espaço efetivo da ação dos militares. Nesse sentido, essa necessidade de apoiar não só a desconstrução daquilo que poderia ser um Brasil de todos, no sentido de uma sociabilidade efetiva no tocante à reforma agrária e à democracia, isso, à época, não servia para o grande olhar do capital norte-americano.

Tribuna Independente – E que efeitos esses elogios à ditadura feitos pelo presidente da República e seus aliados mais próximos podem gerar no futuro?

Cláudio Jorge – O que está por trás desses elogios? Obviamente, que está por trás uma cultura do ódio. E quando se constrói um discurso que apoia a tortura, que apoia a não possibilidade da expressão popular, das minorias, você está construindo o silenciamento dessa nova geração. Em que sentido? Primeiro, há o apoio em alto grau de tecnologia sem pesquisa. E, ao mesmo, tempo ocorre o que chamamos no contexto atual de negativa intelectual. Parece que a partir do governo do presidente, essa ideia de cultura, de criticidade, de História, perdeu sua validade. Então, estudar, pesquisar, parece um mal para a construção do pensamento do governo. Então, obviamente, que há uma motivação a esse discurso que nega a formação e a educação. E isso é um dispositivo para apagar a própria História. E uma sociedade que não tem como retrovisor a História, dificilmente tem como se posicionar diante dos crimes da ditadura, as torturas, por exemplo. Vão dizer que se trata de ficção, interpretação. Ou visão histórica. Pelo contrário, não existem na sociedade brasileira testemunhos tão graves, tão intensos, em relação ao que foi a tortura no Brasil.

Tribuna Independente – O senhor usou a expressão “ditadura civil-militar”, numa alusão à participação de setores civis no golpe e na manutenção do regime durante os 21 anos. Que setores civis foram esses?

Cláudio Jorge – Principalmente a extrema-direita e os industriais. Você vai ter casos, por exemplo, que a Igreja, naquele momento, apoia… A marcha em nome de Deus, enfim… Ou seja, toda a perspectiva que tinha como modelo a reforma agrária, na maior questão a crítica à propriedade privada, a extrema-direita não admitia. Então, civil-militar por isso, porque, realmente, uma boa parte dos empresários à época, a elite nacional, conjugou e decidiu assim, dentro da perspectiva do viés militar, amarrar socialmente o esgotamento de um futuro Brasil popular. O que quero dizer é o seguinte, a elite, que vai produzir uma ideologia nacional, não consegue dialogar com a expressão popular. Ou seja, ela não conseguiu esperar o que seria, de fato, esse Brasil a partir de uma necessidade que nascia da ala mais periférica e necessitada do país. É interessante que você tem, ao mesmo tempo, no Brasil uma ação social bastante caótica. Como disse Caio Prado Júnior, a gente combina em nossa formação um processo de modernidade que não rompe com o latifúndio. Então, quando essa elite percebe que a população precarizada pode chegar a um patamar social possível de sociabilidade, o golpe é instituído, criado, foi um golpe contra a democracia, contra a emancipação política e humana que poderia ocorrer a partir do governo de João Goulart. É como colocar aquele governo como comunista, mas ele não tinha nada de comunista. Pelo contrário, tinha uma perspectiva social que o capital norte-americano não admitia qualquer tipo de sociabilidade.

Tribuna Independente – É bem frequente no discurso de Jair Bolsonaro o combate ao comunismo ou o socialismo “iminente”. Ele já afirmou que os militares são “a última trincheira contra o socialismo no Brasil”. Qual a sua avaliação sobre essa reprodução caricata de discurso da Guerra Fria?

Cláudio Jorge – Na História isso se chama anacronismo. O historiador até pode errar em alguma interpretação, mas não pode cometer anacronismo. É o que o governo vem fazendo. Você não tem como apontar hoje, no século 21 com um mundo inteiramente globalizado sob as determinações do capital, apontar um país que seja comunista.  Nossa realidade é capitalista e esse discurso é fora de contexto. A equipe econômica do Bolsonaro tenta agora implantar o neoliberalismo, uma política econômica fracassada. Tentam retroceder com o mito de novidade, a partir da reforma da Previdência. Não existe legitimidade nessa compreensão e, ao mesmo tempo, há um olhar distorcido sobre o que é comunismo. Nunca existiu na História o comunismo. A última experiência foi o socialismo, mas tinha como base as relações do capital. A Revolução Russa também foi capitalista, nesse sentido. Não conseguiram romper com o marco da reprodução do capital. Veja só, há uma leitura muito pequena e de uma contradição no sentido dos fatos. Pode ter opinião, pode. Mas com a História é preciso dados, de fonte concreta e, sobretudo, de uma boa interpretação. Isso é feito com uma formação concreta do sujeito e sem essa possibilidade a gente fica falando sob achismo. Sob achismo a gente não constrói governo e, muito mais, uma sociedade.

Fonte: Carlos Amaral / Tribuna Independente



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