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Brasil
22/03/2019 17:00:00

Rio de Janeiro com licença para matar

Testemunhas acusam polícia de matar o menino Kauan Peixoto no sábado, e parentes exigem esclarecimentos. Dados oficiais indicam recorde em número de mortes causadas por agentes do Estado


Rio de Janeiro com licença para matar

Era para ser apenas mais um fim de semana de Kauan Peixoto na casa do pai, a quem visitava a cada 15 dias na comunidade de Chatuba, município de Mesquita, região metropolitana do Rio de Janeiro. Na noite de sábado 16 de março, o garoto de 12 anos saiu para comprar um lanche. Estava ao lado do meio-irmão mais novo quando surgiu uma viatura com policiais. Assustado, o menino mais jovem começou a correr. "Mas meu filho falou 'não devo nada, não sou bandido'. E ficou encostado na parede", conta Luciana Pimenta, mãe do adolescente. Horas depois, uma equipe de três cirurgiões do Hospital Geral de Nova Iguaçu lhe davam a notícia de que seu filho, que chegou entrar no centro cirúrgico com vida, morreu após levar três tiros.

A Polícia Militar (PM) afirma que Kauan foi atingido quando os agentes "foram atacados por criminosos, ocasionando um confronto sem feridos ou mortos". Apenas o adolescente ficou ferido. Quando foi avisada pela esposa de seu ex-marido de que Kauan fora baleado e levado por policiais, Luciana disse que, a princípio, pensou que havia passado o que a versão policial sustenta: que uma bala perdida o atingira. Algo comum naquela comunidade. "Mas, para mim, bala perdida é um tiro só, né? Não três". Na manhã seguinte, depois de deixar o centro médico, correu até a Chatuba para se informar e examinar o local onde o filho fora abordado. "Umas 20 pessoas estavam no bar e viram tudo. Todas contaram a mesma coisa: assim que ele se encostou na parece, já tomou um tiro na barriga. Ele dizia 'não sou bandido, não, sou morador'. Mas foram lá e deram um tiro na perna. Arrastaram ele, algemaram uma criança de 12 anos e jogaram dentro do camburão", acrescenta a mãe. Outro parente, ouvido em condição de anonimato pela TV Globo no Rio, complementa: "Pegaram pela bermuda e jogaram ele na Blazer. Os outros policiais ficaram catando as cápsulas todinhas. Não deixaram uma cápsula pra trás. Não tinha tiroteio".

A mãe fala que ouviu dos médicos a informação de que seu filho recebera três tiros, sendo que um deles deixou "o pescoço de Kauan aberto", segundo as palavras de um dos médicos. Na segunda-feira, quando vestia o garoto para o enterro, Luciana tirou uma foto —enviada ao EL PAÍS— que mostra também um enorme ferimento na bochecha. Ela também fotografou o local, cheio de sangue, onde Kauan estava quando foi levado por policiais, e não encontrou cápsulas de pistola. A mãe ainda conta que oito policiais e dois camburões estavam no hospital no momento em que chegou. De lá partiram depois de concluir o Boletim de Ocorrência e sem dar nenhuma explicação.

A PM diz que levou Kauan na viatura, mas para lhe prestar socorro. Segundo a corporação, "na retaguarda do confronto foi encontrado caído ao solo uma vítima de disparos de arma de fogo. O adolescente, 12 anos, foi socorrido ao Hospital Geral de Nova Iguaçu. Quanto aos marginais fugiram tomando rumo ignorado", disse ao EL PAÍS. A PM não esclarece como, apesar de não relatar detenções ou mortes de criminosos, conseguiu apreender "288 trouxinhas de maconha, 235 pedras de crack, 362 cápsulas de cocaína, 03 rádios Baofeng e 98 reais em espécie". O caso está sendo investigado pela Divisão de Homicídios da Baixada Fluminense (DHBF) e seis policiais militares já foram ouvidos, afirma a Polícia Civil. Já o Ministério Público afirma que o caso só chegará à instituição depois que o inquérito estiver finalizado.

Recordes de mortes provocadas por policiais

De acordo com Luciana, ainda não há um laudo do IML (Instituto Médico Legal), o que poderia ajudar a esclarecer a que distância foram disparados os tiros que atingiram Kauan. Se o relato da mãe e das testemunhas contra a polícia for confirmado, não será um ponto fora da curva no Rio. O Estado é governado desde janeiro por Wilson Witzel (PSC), um político que venceu as eleições em 2018 prometendo dar carta branca aos policiais e defendo que criminosos armados com fuzis deveriam morrer com um tiro "na cabecinha".

Janeiro e fevereiro de 2019 foram especialmente violentos e bateram novos recordes de mortes cometidas por agentes públicos. O Instituto de Segurança Pública (ISP), autarquia vinculada ao Governo do Estado, calcula 160 mortes "por intervenção de agente do Estado" no primeiro mês deste ano, enquanto que em janeiro do ano passado foram 157 (+ 2%). No segundo mês, 145 pessoas morreram, frente a 102 óbitos no mesmo período de 2018 (+ 42%). Isso significa que, nos dois primeiros meses deste ano, o ISP registrou uma média de 5,1 mortes por dia provocadas por agentes.

Os números do Rio, expressivos mesmo num país em que a polícia reconhece matar 5.000 pessoas por ano, não incluem casos de execuções extrajudiciais ainda investigação, como possivelmente é o de Kauan. Dois outros casos emblemáticos sinalizam uma escalada da violência policial e provocaram manifestações de organizações internacionais de direitos humanos, como a Anistia Internacional e a Human Rights Watch. Na favela de Manguinhos, moradores denunciaram seis mortes — quatro no ano passado, duas neste ano — e acusam snipers de atirar de uma torre da Polícia Civil. A corporação diz estar investigando o caso. Já durante uma ação policial nos morros da Coroa, Fallet-Fogueteiro e dos Prazeres no último 8 de fevereiro, ao menos 15 pessoas foram executadas depois de vários minutos sendo torturadas dentro de casas, segundo indicam imagens tomadas após a operação e relatos de testemunhas. A PM, mais uma vez, afirma que houve confronto com os traficantes. O caso está nas mãos do Ministério Público do Rio e sendo acompanhado pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).

Depois dessa operação, a que teve o maior número de mortos desde 2007, o governador Wilson Witzel (PSC) apareceu ao lado do secretário da Polícia Militar para respaldar "uma ação legítima da polícia para combater narcoterroristas". Dias depois, em uma cerimônia, disse que "qualquer atuação do PM, antes de qualquer discussão, é legítima". Ele também reafirmou sua promessa de campanha de que bandidos portando armas deverão ser abatidos. "Se estiver de arma na mão de guerra, fuzil, granada, pistola, a polícia vai agir com rigor e esses terroristas vão continuar sendo abatidos. Para não morrer, larga a arma e se entrega", afirmou. Em outras palavras, o governador reiterou sua "licença para matar" ao menos criminosos armados.

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El País


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