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Alagoas
04/02/2019 16:00:00

Sem demarcações, povos indígenas sofrem com mais ameaças a direitos em Alagoas


Sem demarcações, povos indígenas sofrem com mais ameaças a direitos em Alagoas
Ilustração

Vivendo em periferias e em áreas muito menores do que as minimamente apropriadas para subsistência, as comunidades indígenas em Alagoas veem o processo de demarcação de suas terras se distanciar ainda mais diante da nova Medida Provisória do Governo Federal, que retira da Funai a atribuição desse processo. Até o momento, nenhum dos 12 povos indígenas do Estado tem terras demarcadas. 

Nesta última semana, lideranças do movimento indígena nacional se reuniram em uma série de mobilizações em Brasília. A consigna de "que nenhuma gota a mais de sangue seja derramada" é levantada diante do que consideram uma intensificação dos ataques: no primeiro mês de 2019, comunidades indígenas já sofreram 15 ofensivas no país, além de uma controversa Medida Provisória do Governo Federal e declarações da ministra que podem, em suas perspectivas, legitimar ainda mais a violência contra os povos originários.

 

Em um contexto alagoano ainda inebriado de práticas coronelistas, a situação também não é fácil. 

"Nosso estado é um estado de coronéis. Quando não há retomadas de terra, quando não temos equipes técnicas em campo para estudo de demarcação, fica tranquilo. Já quando a gente consegue equipe em campo, começa toda uma perseguição", relata Gecinaldo, liderança Xucuru-Kariri. 

 

Gecinaldo, liderança Xucuru-Kariri, diz que a situação em Alagoas é ainda mais delicada para os povos indígenas

FOTO: ARQUIVO PESSOAL/GECINALDO

"Sou incluso no programa nacional de Defesa dos Direitos Humanos, e recebemos constantemente ameaça. Se a gente consegue construir um grupo de trabalho e coloca para fazer levantamento fundiário, eles começam a ameaçar e perseguir as lideranças", declara. 

 

No momento, as ameaças estão interrompidas, mas não por algum avanço ou efetiva proteção às comunidades. Se os estudos técnicos de demarcação das terras já vinham a passos lentos, a medida provisória do Governo Federal estancou totalmente o processo. Logo no primeiro dia de governo, o presidente Jair Bolsonaro editou a Medida Provisória 870/19, que entre as várias reorganizações polêmicas, atingiu diretamente os povos originários ao retirar da Fundação Nacional do Índio -  Funai - a atribuição de identificar, delimitar e demarcar as terras indígenas e quilombolas. Antes no Ministério da Justiça, o órgão passa agora a integrar o Ministério da Agricultura. Agora caberá à pasta esta função.

"No momento não estão acontecendo os estudos, pela determinação do atual presidente que desestruturou a Funai, colocando na Agricultura. Não tem equipes, nem perspectiva, nem se sabe quem vai atuar. A proposta é que a gente continue fazendo as retomadas e as articulações, garantindo que a demarcação exista. Não é o querer dele e da bancada ruralista paralisar 100% os processos, como ele já tinha dito durante as campanhas.  Precisamos dizer que não vai ser do modo como ele quer, porque a própria Constituição Federal assegura os territórios demarcados", diz. 

 

Professor Jorge Vieira critica transferência de responsabilidade dos povos indígenas para o Ministério da Agricultura

FOTO: ARQUIVO/GAZETA DE ALAGOAS

Para o cientista político e pesquisador Jorge Vieira, essa transferência de responsabilidade representa um retrocesso de 100 anos. 

 

"Dizemos que há um conflito de interesses. O Ministério da Agricultura, até por sua natureza, é dominado por latifundiários, pelo agronegócio e pela política de interesses que atende a balança comercial no Brasil no mercado internacional", explica o pesquisador.

"Colocar a demarcação das terras indígenas e quilombolas submissa ao Ministério da Agricultura é a mesma coisa que colocar raposa cuidando de galinheiro. Agronegócio, madeireiras, mineradoras, têm interesse histórico e explícito em relação aos povos indígenas, que é interromper o processo de demarcação do território". 

Essa relação de negligência com o território indígena, segundo Vieira, vem sendo progressiva. "Já vinha parando no governo da Dilma, piorou com Temer e, agora, com a proposta dita pelo presidente de não ser demarcado, é o caos. Há comunidades indígenas que sequer iniciaram o processo", relata. 

Os 12 povos: negligência, cooptação, retirada de direitos, e nenhum processo concluído

 

Aldeia Xucuru-Kariri em Alagoas: comunidade é carente e cheia de demandas urgentes

FOTO: XUCURU-KARIRI GECINALDO

Tingui-Botó, em Feira Grande; Kariri-Xocó em Porto Real do Colégio ; Geripancó, em Pariconha; Xucuri Kariri, em três localidades de Palmeira dos Índios, entre elas a Fazenda Canto e o Boqueirão; Wassu Cocal, em Joaquim Gomes; Karapotó, em duas localidades de São Sebastião; Karuazu, em Pariconha; Kalancó em Água Branca e Dzubucuá. Mesmo em meio a tantos ataques, 12 povos indígenas resistem no Estado. 

 

A resistência é pela luta de sobrevivência e de existência enquanto povos originários. "Infelizmente não há nenhum processo de demarcação concluído", reforça Gecinaldo. "Principalmente os povos do sertão não conseguem sequer avançar no reconhecimento de sua tradicionalidade, de que os territórios são seus por direito", conta. 

"Há uma necessidade enorme de assistência à saúde que leve em consideração nossos costumes, mas hoje somos jogados abandonados. Temos perdido lideranças importantes por falta de assistência e de saúde indígena. Não há prestação de assistência, mas uma enrolação e uma política de cooptação", acrescenta. 

Mesmo a educação, sob responsabilidade do Estado, é esvaziada nas comunidades. "A linha atual do Ministério da Educação é de descaracterizar os povos indígenas, de não respeitar a educação indígena, de qualidade diferenciada. Não temos avançado a esse respeito. As escolas são atendidas precariamente por pessoas contratadas, porque não conseguimos cargo de professor indígenas. A escola fica a mercê de processos seletivos externos", detalha a liderança.

No que diz respeito ao povo Xucuru-Kariri, por exemplo, Gecinaldo retrata que o processo de demarcação parou após reduções significativas do território. 

"Habitamos no município de Palmeira dos Índios, mas estamos distribuídos em oito aldeias espalhadas em território nacional, na Bahia e Minas Gerais. Foi reconhecida que nossa área era de 36 mil hectares. Passamos por vários estudos da Funai e o último, em 2006, reconheceu apenas 7.033 hectares. Foi então declarada portaria do Ministério da Justiça, fizemos a demarcação física, colocamos os marcos geodésicos e placas de identificação. No entanto, por pressão política, o levantamento fundiário foi suspenso e parou por aí". 

Conflito é também por discursos 

Por falta de demarcação de terras se entende também uma investida veloz em apagar os vestígios dos povos originários, um genocídio em que se utiliza violência, dispersão, burocracia e tantas outras ferramentas, incluindo o discurso. Nesse conflito, a terra e o território se tornam instrumentos e também finalidades. Ao tempo em que retirar a terra dos povos indígenas culmina em sua dizimação, negar o direito de identidade e existência das comunidades é uma estratégia importante para esvaziar a própria luta pelo direito à terra. 

 

Povos indígenas lutam para manter direitos e reclamam da falta de políticas voltadas às comunidades

FOTO: XUCURU-KARIRI GECINALDO

Em Alagoas, segundo Gecinaldo, há exemplos bem icônicos desse uso de discursos. "Quando começamos a ir a campo, fazendeiros e políticos começam a fazer uso de meios de comunicação, e fazem terrorismo na sociedade. Quando temos GTs, os prefeitos vão lá e ficam jogando a sociedade da cidade contra o povo indígena. Dizendo que vai invadir, que vai tomar, e não é nada disso. A gente sabe que a ideia é gerar conflito". 

 

Essas propagandas anti-indígenas, segundo Gecinaldo, também se reforçam a partir das declarações ideológicas da ministra da Mulher e dos Direitos Humanos, Damares Alves, que tem se colocado a partir da defesa da ?evangelização? dos povos. 

"Ela não faz isso por falta de conhecimento. Ela quer realmente se apoderar. A ideia dela é evangelizar, mas os povos indígenas temos nossas religiões, nossas crenças. Nem ela, ou outro governo ou ministro podem interferir no modo de ser dos povos indígenas", conta.

O cientista político também vê com consternação as investidas evangelizadoras nas falas oficiais da chefe da pasta de Direitos Humanos. "Eu pensava, com sinceridade, que esse discurso não existia mais. Os indígenas querem manter sua cultura, rituais e direito à comunidade, mas obviamente querem ter relação com o mundo todo. Qual o problema disso? Você é alemão, do país Alemanha, não quer conhecer Brasil, Estados Unidos? Com os indígenas também", exemplifica. 

"Por que os indígenas não podem ter acesso ao conhecimento global e manter sua tradição, religião e identidade?". 

Por sua vez, a Funai também segue sob responsabilidade da atual ministra de Direitos Humanos e da Mulher, Damares Alves. "A ministra Damares não tem preparação, conhecimento do ponto de vista intelectual e de competência, para gerir a realidade dos povos indígenas", comenta. Nesse sentido, alguns marcos são importantes para compreender o processo e como ele se mantêm. 

O pesquisador destaca o pedido de perdão feito pelo papa João Paulo II, e a adoção de medidas no catolicismo para reverter os danos gerados e fortalecer as identidades e culturas específicas indígenas. Em seguida, acrescenta, vem o retrocesso violento com práticas de religiões neopentecostais.  

"Em geral, essa busca acontece no momento mais frágil da população indígena. Quando há fome, doença, não garantia de direitos constitucionais. Vem a religião para dar roupa, comida, assistência à saúde e, no bojo da caridade, vai o proselitismo religioso, prática de 519 anos", comenta. 

Os impactos gerados são expostos ainda mais pelo pesquisador. "A monocultura da fé tem impacto grande sobre o povo indígena Terena e Guarani Kaiowa. Efeitos desastrosos, porque a religião e a fé dão o sentido mais profundo ao ser humano. Não à toa, o índice de suicídio no Mato Grosso do Sul é altíssimo a cada ano". 

Gecinaldo sublinha como esses ataques material e subjetivo acontecem de forma simultânea. "A gente repudia essas colocações. Vai contra a Constituição Federal e a Convenção 169 da Organização do Trabalho", cita.

"Já ha conflitos entre povos indígenas e evangélicos porque demonizam a cultura indígena e ai convencem, e gera conflitos internos dentro das comunidades. A ideia é alimentar esses conflitos, para que indígenas deixem cultura, tradições, o que nos caracteriza enquanto índios, nossos rituais sagrados, nossa identidade, nosso modo de ser enquanto comunidade tradicional", começa.  

"Ao mesmo tempo, atacam na prática com as invasões de territórios, com a proposta de aluguel de terras indígenas, que colocam para alugar para expandir a agricultura e o cultivo de soja. Isso não pode. Nós temos nossa produção orgânica, agroecológica, nosso conhecimento próprio de produção". 

Apesar disso, as comunidades indígenas reforçam que a mobilização não só permanece, como também se expande, inclusive a partir da busca por aliados. 

"A próprias universidades têm trabalho forte, vários professores, tanto de instituições públcais como particulares. Há aulas hoje sobre cultura, educação e saúde indígena. Eles fazem seminários e chamam lideranças para mostrar como é a situação. Começam a ser parceiros, aliados do movimento indígena", conta. "E começam a ver também a necessidade de aliar ao movimento, e da importância da terra indígena, para preservação do meio ambiente, da fauna, da flora. Os invasores e políticos não entendem mas a gente está somando aliados. Os povos indígenas vão buscar mais aliados", reforça.

Gazetaweb



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