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Saúde
23/11/2018 15:00:00

Pouco conhecido, vírus da família do HIV infecta milhares no País


Pouco conhecido, vírus da família do HIV infecta milhares no País
Ilustração

á 17 anos, João Paulo Pereira Lopes começou a sentir uma dor na perna direita. Algum tempo depois a dor se estendeu à outra perna, ao ponto de começar a atrapalhar o seu trabalho como auxiliar de limpeza em um prédio de São Paulo. Um dia, enquanto ia puxando o carrinho do lixo, as pernas lhe faltaram e caiu, machucando a cabeça. Levou cinco pontos e perdeu o emprego. Durante sete anos, João Paulo passou por vários médicos, mas ninguém conseguia descobrir o que ele tinha. Longe de melhorar, a situação foi se agravando. Às dores nas pernas se somaram novas dores nas costas. Depois veio a incontinência urinária, que lhe causava grandes constrangimentos. Em 2008, durante um diagnóstico no posto de saúde da Penha, na zona leste de São Paulo, João Paulo finalmente descobriu que a causa dos seus males era um vírus do qual nunca tinha ouvido falar: o HTLV-1.

 

A doença mais negligenciada

João Paulo é um dentre as centenas de milhares de brasileiros infectados pelo HTLV-1, o vírus linfotrópico de células-T humanas, pertencente à mesma família que o HIV, o vírus da Aids. O Brasil é o país do mundo com maior número absoluto de casos. O HTLV-1 afeta mais pessoas no País do que o HIV, a hepatite C ou a tuberculose. Apesar disso, o vírus recebe pouca atenção. Os médicos que trabalham com o HTLV-1 denunciam falta de estrutura e a ausência de ações específicas contra o vírus.

“Não existe um programa nem nacional, nem estadual, nem municipal”, afirmou Augusto Penalva, coordenador do serviço de HTLV-1 no Instituto de Infectologia Emílio Ribas, um ambulatório em São Paulo que acompanha mais de 700 pacientes como João Paulo. “É a doença mais negligenciada das negligenciadas. Inclusive, quando se lança um programa sobre doenças negligenciadas não é incomum deixar fora o HTLV.”

Uma das possíveis razões pelas quais o vírus não é alvo de ações mais enérgicas por parte do poder público é que a grande maioria dos pacientes é assintomática.

“Como é um vírus antigo [evolutivamente falando] e está bem adaptado, a maioria das pessoas não desenvolve as complicações mais graves, o próprio sistema imunológico do paciente controla o vírus”, explica Arthur Maia Paiva, médico da Universidade Federal de Alagoas, em Maceió.

Apesar de só entre 5% e 10% dos portadores desenvolverem complicações médicas, estas podem ser graves e inclusive fatais. Uma delas é a leucemia de células-T do adulto, um câncer das células sanguíneas bastante agressivo. Outra, a que sofre João Paulo, é a paraparesia espástica tropical, uma condição que afeta a medula espinal e pode deixar o paciente em cadeira de rodas.

O paciente João Paulo Pereira Lopes conversa com o médico Jorge Casseb no hospital Emílio Ribas – Foto: USP Imagens

O alto número de pacientes assintomáticos, unido ao fato de que, no caso da paraparesia, o desenvolvimento da doença é progressivo ao longo de anos, dificulta o diagnóstico.

“Normalmente os pacientes nem percebem. Têm uma dificuldade de subir escada, uma dor… Quem vai no médico quando tem isso? É muito difícil. E às vezes vai e faz raio-X, tomografia, ressonância… Geralmente isso está normal, e acaba acontecendo que a pessoa passa sete, às vezes até dez anos, até descobrir a causa”, diz Jorge Casseb, médico do Ambulatório de HTLV e professor associado do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo.

Outro problema que contribui para o largo intervalo entre o início dos sintomas e o diagnóstico é o desconhecimento do HTLV-1 por parte dos próprios profissionais da saúde. O professor Casseb menciona o caso de uma paciente do interior de São Paulo que passou por 29 médicos até encontrar um que tinha sido residente no Ambulatório de HTLV do Emílio Ribas e estava familiarizado com o vírus.

“Ele pediu a sorologia, que custa uns 3 reais, e deu positivo. Mas se você não pensar e não pedir o exame, não tem como identificar”, ele explicou.

O diagnóstico tardio reduz as chances de melhora dos pacientes e supõe um alto custo para o sistema de saúde. Para a médica Jerusa Smid, neurologista do Ambulatório de HTLV, o impacto da doença na vida dos pacientes justifica um maior investimento na prevenção e identificação do vírus.

“Se a autoridade pública colocar na conta o paciente que vai evoluir para uma mielopatia [distúrbios que afetam a medula], que vai se tornar dependente de cadeira de rodas no final da vida dele, que tem uma incapacidade irreversível, progressiva, grave, que está associada a uma maior taxa de infecção, a uma maior hospitalização, a um paciente jovem, que para de trabalhar em uma faixa etária ainda economicamente ativa. Então não entendemos como é que essa conta não considera esses aspectos”, ela disse.

Sem cura, mas com solução

“Se você perguntar para mim como é que eu peguei esse vírus, eu não sei responder”, diz João Paulo. “Eu tirava o lixo dos apartamentos e muitas vezes eu me cortava. Pode ser que eu me tenha cortado com alguma seringa infectada, sei lá, eu não sei, porque lá a gente ia pegar o lixo, a gente jogava caco de vidro, a gente se machucava… Pode ser que eu peguei daí.”

Existem três formas de contrair o vírus: por relações sexuais desprotegidas, por contato com sangue infectado (por transfusão, compartilhamento de seringas) e através do aleitamento materno. Isso faz com que a doença se transmita principalmente dentro das famílias, entre parceiros através de relação sexual, e de mães para filhos via aleitamento. Por isso, cada novo paciente identificado vira um “fio” de origem de novos portadores.

“O novelo grande está atrás da porta [do ambulatório]. Você puxa aqui e não sabe o que vai ter lá fora”, diz Casseb, que conta que a cada ano surgem uns 60 pacientes novos, quase sempre por meio de testagens de familiares.

A médica Jerusa Smidt afirma que o HTLV-1 tem também grandes custos sociais – Foto: USP Imagens

Em maio deste ano, uma carta aberta dirigida à Organização Mundial da Saúde e assinada por médicos, pesquisadores e representantes de pacientes, pediu a implementação de estratégias para erradicar o HTLV-1. A carta sugere realizar mais testagens e promover uma maior divulgação do vírus e das doenças a ele associadas, tanto entre profissionais da saúde como entre o público em geral.

Um consenso na área é que a forma mais efetiva de reduzir a incidência do vírus na população é testar as gestantes e orientar as mães portadoras do HTLV-1 a não amamentar os seus filhos, ou a fazê-lo por períodos mais curtos. Com essa estratégia, cidades como Nagasaki, no Japão, conseguiram reduzir a prevalência da doença de 20,3% para 2,5% em vinte anos.

No Brasil, os especialistas consideram que estamos muito atrasados na luta contra o HTLV-1. Programas como o de Nagasaki começaram a ser desenvolvidos há mais de 30 anos, enquanto aqui ainda não existe nada parecido. Os bancos de sangue são testados desde 1993, mas mesmo nesse caso só se faz uma prova de triagem, sendo que o diagnóstico requer uma segunda prova confirmatória com um teste mais sensível. “E quando você tem a sorologia [positiva para o HTLV-1], você não é encaminhado para lugar nenhum”, disse Augusto Penalva, coordenador do Ambulatório de HTLV do Emílio Ribas.

Adele Schwartz Benzaken, diretora do Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das IST [infecções sexualmente transmissíveis], do HIV/Aids e das Hepatites Virais do Ministério da Saúde, disse que estão preparando um estudo nacional para o ano que vem para conhecer a prevalência do HTLV-1 em gestantes no Brasil. O resultado servirá para definir as linhas de ação futuras para combater a transmissão do HTLV-1 de mães para filhos.

“Ele [o estudo] vai mostrar quais são as regiões do Brasil em que precisamos estipular esse tipo de regra. Tem muito [HTLV-1] na região Norte, no Nordeste, na Bahia. Mas tem regiões do País que não têm casos. Então, para que é que você vai fazer uma norma nacional de testar todas as gestantes do País quando a infecção pode estar concentrada?”, ela disse.

Benzaken espera que os resultados estejam prontos antes do final de 2019. Além disso, o Ministério também disse estar trabalhando na atualização do protocolo de HTLV-1. Quando estiver pronto, o protocolo servirá de guia para a capacitação dos profissionais da saúde.

Hoje João Paulo tem 47 anos. Depois do acidente laboral ele não voltou a trabalhar, entrou no auxílio-acidente e está se aposentando. Ele vai ao ambulatório do Emílio Ribas a cada dois meses para acompanhamento médico e fisioterapia.

“Quando eu cheguei aqui estava muito ruim. Aí devido ao tratamento médico, aos medicamentos, eu estou bem melhor. Antigamente você olhava para mim e falava, ‘esse cara vai morrer’. Hoje em dia meu rosto tá ‘cheinho’, estou melhorando, graças a Deus. Graças a Deus e graças aos médicos”, comemorou.

No último dia 10 de novembro, várias cidades do mundo comemoraram pela primeira vez o Dia Mundial do HTLV-1. A iniciativa espera chamar a atenção sobre os problemas de saúde associados à infecção com o vírus.

Infografia: Caio Vinícius Bonifácio/Jornal da USP

Mais informações sobre o vírus e as atividades do Dia Mundial do HTLV-1 no e-mail <jcasseb10@gmail.com>, do doutor Jorge Casseb, do Instituto de Medicina Tropical da USP.



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