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Especial
16/11/2018 19:00:00

'Eu amo o meu país, mas não quero voltar': A situação de médicos cubanos no Brasil


'Eu amo o meu país, mas não quero voltar': A situação de médicos cubanos no Brasil
Ilustração

Yahoo Notícias

O clínico geral cubano Frank Rodríguez*, de 35 anos, trabalha há 4 anos em um hospital do município de Serra, no Espírito Santo. Rodríguez faz parte de uma das primeiras turmas de médicos cubanos que chegaram ao estado pelo programa Mais Médicos. Mas o fim da parceria com Cuba no programa pode atrapalhar os planos do profissional, que encontrou no Brasil uma chance de recomeço

Na última quarta-feira (14), Rodríguez foi surpreendido quando, em nota, o Ministério da Saúde de Cuba anunciou o fim da parceria, atribuindo a decisão a declarações "depreciativas e ameaçadoras" do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL). Ainda não se sabe como será o futuro desses profissionais, mas a expectativa divulgada é de que médicos cubanos deixem o País até 31 de dezembro.

O cenário preocupa Rodríguez. Para ele, o retorno a seu país de origem não é uma possibilidade. Vivendo no Brasil ele não só consegue exercer sua profissão, como constituiu uma família. "Eu amo o meu país, mas não quero voltar para lá de maneira compulsória. Eles não podem decidir por mim. Eles não perguntaram se eu queria ficar no Brasil. E eles também não me deixam fazer a prova para revalidar o diploma", afirma em entrevista ao HuffPost Brasil.

Eles não perguntaram se eu queria ficar no Brasil. E eles também não me deixam fazer a prova para revalidar o diploma.Frank Rodríguez, médico cubano, em entrevista ao HuffPost Brasil.

Contrariando o governo cubano, Rodríguez deu entrada ao processo do Revalida (Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos Expedidos por Instituições de Educação Superior Estrangeira) como tentativa de permanecer no País. Iniciado em 2017, o exame ainda está em andamento e a segunda fase será realizada no próximo sábado (17) e domingo (18).

"Não tenho assistência nenhuma da empresa estatal que cuida do meu contrato, apenas assinei o documento e é isso. Eles tentam proibir a gente de fazer o Revalida porque é o único jeito de manter a gente vinculado ao governo cubano. E eles têm medo de perder o contrato porque somos os empregados que estão aportando uma grande quantidade de dinheiro para Cuba", argumenta Rodríguez.

Documentos obtidos pela reportagem do HuffPost Brasil comprovam que Cuba não permite que os profissionais do Mais Médicos prestem o exame enquanto fazem parte do programa. No contrato firmado entre os profissionais e a empresa Comercializadora de Servicios Médicos Cubanos S.A (CSMC), estatal cubana responsável pela parceria, uma das cláusulas de obrigações por parte do profissional se refere ao Revalida. Lê-se: "Não requerer exames de revalidação para o exercício da profissão".

O documento também afirma que prestar o exame do Revalida é uma das justificativas para a quebra de contrato e a desvinculação do programa (leia mais sobre o contrato abaixo).

 

ARQUIVO PESSOAL
Parte do contrato entre profissionais médicos cubanos e a empresa estatal.

 

 

ARQUIVO PESSOAL
Parte do contrato entre profissionais médicos cubanos e a empresa estatal.

 

"Com o meu diploma revalidado eu não preciso mais deles [do governo de Cuba]. Depois de passar na prova, vou poder dar entrada as documentações e vou ter direito ao CRM [registro no Conselho Regional de Medicina necessário para exercer a profissão no Brasil]. Você fica igual ao médico brasileiro", desabafa.

O medo e os processos de médicos contra Cuba

 

UESLEI MARCELINO / REUTERS
A médica cubana Elza Vega Rodriguez (de verde) com médicos brasileiros em Itiúba (BA), em 2013.

 

A cubana Yanelis Miranda Herrera está no Brasil desde 2013 e passou cerca de 2 anos atuando como médica da família no interior do Paraná. Atualmente, ela é considerada por Cuba uma desertora. Isso porque, em 2016, Yanelis foi desligada do programa Mais Médicos depois de ter processado o governo cubano.

"Em Cuba, nós assinamos o contrato e o documento deixa claro que nós íamos ganhar cerca de R$ 3 mil reais. Mas ninguém me explicou que os outros médico estrangeiros iam ganhar mais de R$ 10 mil reais. É essa a injustiça. As pessoas não sabem da metade do que faz Cuba. Eles falam de humanismo, mas olha o que fazem com a gente. É uma escravidão", desabafa em entrevista ao HuffPost Brasil.

É injusto eu ser médica e não poder trabalhar. Os brasileiros precisam de atendimento adequado.Yanelis Miranda Herrera, médica, em entrevista ao HuffPost Brasil.

A médica foi uma das profissionais que entrou na justiça para receber a totalidade do pagamento estipulado pelo programa, de cerca de R$ 11 mil reais. De acordo com o contrato cubano, os profissionais recebem apenas 30% do valor. O resto do montante é direcionado para a estatal, que administra os valores junto ao governo e reinveste em serviços públicos no país, como saúde e educação.

Depois do processo, a cubana conta que teve o seu contrato suspenso e chegou a recebeu uma passagem de avião para voltar ao seu país de origem. Porém, a perspectiva de retornar para uma condição de vida precária fez com que Yanelis preferisse permanecer no Brasil, mesmo impedida de exercer a sua profissão.

Cubanos são contratados em regime diferente

O acordo que permite a vinda dos profissionais cubanos é firmado com a Opas (Organização Panamericana de Saúde), e não individualmente com cada médico que quer vir para o Brasil. Por isso, o valor total da bolsa é pago para a Opas que repassa o valor para o Ministério da Saúde de Cuba e, então, transfere os 30% estipulados pelo contrato a cada um dos profissionais. Em 2018 houve reajuste e o valor da bolsa é de R$ 11.865,60. Em Cuba, todo os médicos são funcionários públicos do Ministério da Saúde. O dinheiro que é retido pelo governo cubano é reinvestido em serviços públicos no país.

"Eu trabalhava como médica da família em Cuba, mas decidi vir para o Brasil porque não tem condições de alguém morar lá. Eles não pagam pelo plantão, meu filho não tinha chance de futuro nenhum, eu não conseguia comprar nem o frango de almoço para a minha família, e isso é porque eu era médica especializada. Quem aguentaria viver lá?", questiona. "Decidi que eu iria ficar aqui, mesmo que ilegal. Eles me tiraram do programa e disseram que eu ia ter que ficar 8 anos sem pisar em Cuba. Eles acham que podem mandar na gente, mas nós queremos ser livres."

Depois de ficar um ano desempregada, Yanelis começou a trabalhar como auxiliar de consultório em uma clínica de Curitiba, mas sonha em voltar a exercer a sua profissão.

"É óbvio que a gente trabalha no que surgir. Mas eu me formei com o coração também. É injusto eu ser médica e não poder trabalhar. Os brasileiros precisam de atendimento adequado. É tudo muito injusto."

Os números do programa "Mais Médicos"

Orçamento: Em 2017, o Ministério da Saúde do Brasil destinou R$ 3,1 bilhões para o Programa Mais Médicos. Para 2018, a cifra é de R$ 3,3 bilhões.

Profissionais: Em 2017, o Ministério da Saúde do Brasil abriu concurso para selecionar brasileiros para o programa: 6.285 se inscreveram para 2.320 vagas disponíveis. Apenas 1.626 apareceram para trabalhar. Cerca de 30% dos profissionais deixaram seus postos de trabalho antes de um ano de serviço.

Atualmente, os médicos cubanos ocupam 8.332 das 18.240 vagas do programa. Eles trabalham em 2.885 cidades, sendo que 1.575 municípios só possuem cubanos atendendo a população.

Os cubanos são responsáveis por 75% dos atendimentos a população indígena no Brasil.

O Mais Médicos ainda conta com cerca de 2.000 vagas ociosas.

Assim como para Yanelis, retornar para Cuba também não é uma possibilidade para Rodríguez. O médico já construiu uma família no Brasil e teme ser afastado de sua esposa. "Eu quero ficar. Eu não posso voltar para Cuba, porque se eu for para lá eu não tenho nenhuma garantia de que eu volte para o Brasil e consiga ficar com a minha família", explica.

Ainda não se sabe como deverá ser feita a transição dos profissionais, mas a expectativa divulgada é de que médicos cubanos deixem o País até 31 de dezembro.

'O médico cubano nunca foi valorizado'

DIVULGAÇÃO
O advogado André Santana Correa.

O advogado brasileiro André Santana Corrêa representa parte dos médicos cubanos em ações na Justiça Federal. Segundo ele, os profissionais alegam falta de igualdade de condições em relação aos brasileiros e outros estrangeiros que participam do Mais Médicos. As principais questões são a dificuldade para renovar a participação no programa e a disputa pelo salário integral.

"Esse acordo sempre veio carregado de premissas falsas, uma vez que o médico cubano nunca teve o valor do seu trabalho reconhecido nem pelo Brasil, nem por Cuba. O tratamento aos cubanos nunca foi isonômico: os médicos recebem cerca de 30% do salário total previsto pelo programa, enquanto outros médicos estrangeiros recebem todo o valor. Ainda tem o fato de que o período de contratação nunca pode ser prorrogado no programa, a não ser via processo judicial", argumenta em entrevista ao HuffPost Brasil.

Com a saída de Cuba do acordo, a perspectiva de Correa é de que os cubanos que desejarem permanecer no Brasil tenham os seus direitos reconhecidos.

O que Bolsonaro diz sobre os médicos cubanos

SERGIO LIMA VIA GETTY IMAGES
O presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) afirmou nesta quarta-feira (14) que "cubano que pedir asilo aqui vai poder ficar."

Durante entrevista coletiva na última quarta-feira (14), Bolsonaro voltou a questionar a formação e a qualidade do atendimento prestado pelos cubanos na saúde, mas ofereceu asilo aos profissionais que quiserem permanecer no País.

"É um desrespeito com quem recebe tratamento por parte desses cubanos. Não temos qualquer comprovação de que eles sejam realmente médicos e estejam aptos a desempenhar a função. Vocês mesmos, eu duvido que alguém queira ser atendido pelos cubanos", disse Bolsonaro."O programa não está suspenso. Profissionais de outros países podem vir para cá. E, a partir de janeiro, nós pretendemos dar uma satisfação às populações desassistidas. O cubano que pedir asilo aqui vai poder ficar", completou.

Para o médico cubano Frank Rodríguez, a fala de Bolsonaro é preconceituosa. "Eu sinto um certo preconceito quando ele fala. Mas não é só na fala dele. Eu sou um bom médico como qualquer outro. Talvez, se eu tivesse feito essa prova logo no início do programa, as pessoas não estariam questionando os profissionais de Cuba. Talvez fosse menor o preconceito. Eu não estou fugindo da prova, nem os meus colegas", explica o médico.

Rodríguez disse que a decisão do governo cubano não foi uma surpresa, porém o profissional esperava que o fim do programa ocorresse apenas em 2019. "Eu tinha esperança que o fim do acordo fosse acontecer mais para frente no ano que vem, quando Bolsonaro fosse presidente de verdade. A notícia não foi uma surpresa porque eu acompanhava o que ele dizia sobre os médicos cubanos nas eleições, e ele foi bem claro. Mas agora eu tenho que correr para ajeitar a documentação e revalidar o meu diploma."

Médicos formados no exterior não podem atuar no País sem a aprovação no Revalida, com exceção daqueles que atuam no "Mais Médicos", que não precisam fazer o exame. Em 2017, ao julgar ações que questionavam o programa, o STF (Supremo Tribunal Federal) validou o programa e manteve a dispensa do Revalida nos contratos de até 3 anos.

De acordo com a lei que regulamenta o projeto, não há necessidade devido ao caráter emergencial da saúde pública no País. No entanto, para os profissionais que desejarem renovar a permanência no programa, o Revalida é necessário. "Os médicos brasileiros que se formaram no exterior não precisam revalidar o diploma para atuar no programa, seria injustiça exigir apenas dos cubanos", argumenta o advogado André Corrêa.

*Identidade foi alterada na reportagem a pedido do entrevistado.



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