Uma palavra faz parte da vida dela há muito tempo. Na verdade, faz parte, de forma direta ou indireta, da vida de cerca de 90% das pessoas. Mas ainda é difícil. Ainda soa como algo muito pesado. Mas teve que lidar muitas vezes com ela – e com tudo que vem junto. E percebeu que podia encarar essas seis letras de outra forma. Com informação e conhecimento, a relação podia ser diferente. E assim foi. Hoje, grande parte do seu trabalho está focado nisso. Marcelle Medeiros, 48 anos, é presidente voluntária da Fundação Laço Rosa e busca democratizar informações sobre câncer no Brasil e sonha em diminuir as desigualdades no acesso ao tratamento da doença no País.
Não seria correto dizer que é fácil lidar. Mas Marcelle gosta de encarar de forma mais natural e tratar do assunto de forma real. Seu pai morreu de câncer. Assim como suas duas irmãs – a caçula e a mais velha. Uma avó e uma tia também tiveram a doença. Isso tudo moldou sua forma de lidar com o câncer. "A única coisa que difere quem descobre cedo de quem descobre tarde, quem vive de quem morre, é a informação. Isso é universal. A partir do momento que você sabe que apareceu algo no seu corpo que não estava ali, isso vai fazer a diferença de quando chega seu diagnóstico. Minha relação muda a partir daí".
A única coisa que difere quem descobre cedo de quem descobre tarde, quem vive de quem morre, é a informação. Isso é universal.
E nesses anos todos em que se relaciona com a doença, percebe cada vez mais como é importante compartilhar e falar de forma aberta sobre o assunto. Por isso, algum tempo após a irmã mais nova ser diagnosticada com câncer de mama, elas resolveram criar a Fundação, em 2011. Reconhece avanços desde então. "Acho que hoje tem um poder maior na voz feminina em não querer esconder a doença. Você escuta mais mulheres falando que tem ou tiveram, mas ainda é um tabu. Acho que a palavra câncer é muito ruim, ainda tem muita gente que se esconde, mas sem dúvida alguma hoje se fala muito mais. Mas o Brasil tem a fama de ser muito aberto, mas não é não. Tem mulheres que tem medo, que não se tocam, que não se olham no espelho, tem vergonha, acham errado. E errado é não conhecer o próprio corpo".
E nesses anos todos em que se relaciona com a doença, percebe cada vez mais como é importante compartilhar e falar de forma aberta sobre o assunto. Por isso, algum tempo após a irmã mais nova ser diagnosticada com câncer de mama, elas resolveram criar a Fundação, em 2011. Reconhece avanços desde então. "Acho que hoje tem um poder maior na voz feminina em não querer esconder a doença. Você escuta mais mulheres falando que tem ou tiveram, mas ainda é um tabu. Acho que a palavra câncer é muito ruim, ainda tem muita gente que se esconde, mas sem dúvida alguma hoje se fala muito mais. Mas o Brasil tem a fama de ser muito aberto, mas não é não. Tem mulheres que tem medo, que não se tocam, que não se olham no espelho, tem vergonha, acham errado. E errado é não conhecer o próprio corpo".
Marcelle sabe muito bem como é importante essa atenção com o corpo. A irmã mais nova, Aline, percebeu algo de diferente durante o banho. Foi diagnosticada em 2007 aos 33 anos, grávida. Em 16 dias estava no centro cirúrgico e iniciou o protocolo de quimioterapia. Meses depois, seu filho nasceu saudável. Mas o processo foi todo complexo para a família. "Foi um período bastante complicado porque há dez anos você nem tinha ideia de que a doença poderia atingir pessoas tão jovens". Mas podia. E Aline começou o tratamento, sempre com acesso a médicos e com plano de saúde. Mas no dia a dia de hospital e exames, Marcelle e a família perceberam que a situação era muito desigual. "Ela tinha essa condição, mas isso não era pra todos, muita gente fica na fila e morre porque não tem um diagnóstico assertivo no tempo certo. A pessoa é barrada ou no acesso ao médico, ou ao exame e a pessoa morre. É simples assim."
Hoje tem um poder maior na voz feminina em não querer esconder a doença.
Com essa percepção, Marcelle, Aline e a irmã mais velha, Andréa, resolveram criar a fundação. Era uma época em que havia pouco conteúdo de qualidade e em português na internet e realmente ter acesso a dados era um privilégio. "A fundação nasceu para ser um lugar de informação segura, com o propósito de influenciar política pública, defender o direito do paciente e diminuir as desigualdades de acesso ao tratamento da doença".
Além disso, a fundação também queria oferecer um espaço de acolhimento para os pacientes e logo surgiu o primeiro projeto do grupo, de doação de perucas. Marcelle lembra que a irmã sempre teve muito alto astral durante todo o tratamento, mas no momento em que o cabelo caiu, ela caiu um pouco também. "Ali entendemos que não é só uma vaidade, é uma coisa de identidade e é a hora que a doença grita pra você. É quando o paciente se reconhece doente e isso é bem difícil e vimos que tinha uma forma de ajudar as pessoas."
Muita gente fica na fila e morre porque não tem um diagnóstico assertivo no tempo certo.
Assim nasceu o banco de doações de perucas online. Pacientes de qualquer lugar do Brasil fazem a solicitação e recebem a peruca em casa. "Há 8 anos era online mas feito de forma meio manual. Demorava bastante tempo. Mas hoje o banco é totalmente online. O paciente clica no modelo que ele quer, preenche o formulário e chega na casa dele. Ele recebe uma caixa super bacana com a peruca, lenço, informativo e uma carta de alguém que passou por isso dando uma força".
Partimos do princípio que quando o paciente pede [uma peruca] ele precisa de um afeto. Às vezes ele até tem o dinheiro para comprar, mas não tem coragem de ir na rua.
Atualmente a fundação distribui de 80 a 100 perucas mensalmente, mas Marcelle sabe que a demanda é bem maior. "Hoje não atendemos mais porque temos recurso limitado. E partimos do princípio de que quando o paciente pede ele precisa. Às vezes ele até tem o dinheiro para comprar, mas não tem coragem de ir na rua, então a gente não qualifica por ordem econômica. É por necessidade."
Essa parte do trabalho ganhou tanta força que foi criado um outro projeto a partir dele. Diante de doações de cabelo que começaram a receber, o grupo lançou um projeto de qualificação profissional, o Força na Peruca. "Vimos que muita gente queria ajudar e não sabia como e começamos a aceitar cabelo, que é uma forma de engajar essas pessoas que a partir da doação conheciam o que era o câncer e identificamos um gargalo. Vimos uma oportunidade de formar peruqueiros, uma profissão meio escassa". Assim, a fundação passou a oferecer o curso a jovens de área de risco social. A ideia é ensinar a confeccionar a peruca e a dar a eles noções de empreendedorismo e finanças.
Se você conhece que você tem uma doença que pode ser tratada, isso é poder. O que a gente faz é empoderar as pessoas.
"Plantamos uma semente de que se ele construiu uma peruca, que é uma coisa super difícil, ele consegue qualquer coisa na vida. Essa é a proposta do projeto e a prova final é o encontro com o paciente. Para os dois é uma troca sem preço." Em dois anos de projeto, a fundação já formou mais de 150 peruqueiros com a certeza de que muitas vidas foram modificadas de alguma forma. E é isso que Marcelle busca com seu trabalho. Mostrar possibilidades e levar as ideias da fundação a cada vez mais pessoas. "Falar é importante porque é conhecimento, e conhecimento é poder. Se você conhece que você tem um direito, isso é poder. Se você conhece que você tem uma doença que pode ser tratada, isso é poder. Se você sabe que tem uma doença que existe 95% de chance de cura, isso é poder. O que a gente faz é empoderar as pessoas".
E tem seus planos. "Queria estar viva para ver o acesso ao diagnóstico precoce ser uma realidade porque se trata de mudar a cultura e a forma como o paciente chega e é atendido no sistema público. A gente trabalha para que isso se expanda e seja para todos. Tem que ser para todos." É claro que isso não torna fácil lidar com a doença, mas a ideia não é essa. "Se pudermos celebrar cada dia de vida, não importa quantos dias o paciente tenha, a gente vai fazer. Foi assim que minhas irmãs encararam. É esse nosso valor e cultura".
Algo que vai muito além da doença. Muito além de uma palavra.