Transparência
A mestranda em Ciências Sociais Jaqueline Martins diz que tem dificuldade para acessar as proposições. Militante de movimentos sociais, ela considera que falta transparência e isso desestimula os cidadãos a fiscalizar o trabalho parlamentar.
— Eu acho importante acompanhar porque, direta ou indiretamente, todos os projetos afetam as nossas vidas. Mas não é uma coisa fácil e intuitiva. O passo a passo para achar e compreender tramitações, na verdade, é complicado para quem não costuma acompanhar o processo legislativo no dia a dia — alerta.
Formada em Letras, Raquel Avelar não tem dificuldades para encontrar projetos em tramitação, já que trabalhou no portal do Ministério da Justiça, em Brasília. Ela considera o sistema da Câmara dos Deputados menos prático do que o do Senado, e acredita que um sistema unificado e menos burocrático facilitaria o entendimento para a maioria da população.
— Faltam detalhes e, ao mesmo tempo, uma simplificação para evitar que a gente se perca nesse processo — refletiu.
A solução para essas demandas pode estar a caminho, mas depende da integração total das bases de dados do Senado e da Câmara, de um lado, e de inovações no campo da navegabilidade e desenho das páginas de pesquisa do outro.
O desafio, entretanto, está lançado e já envolve até os hackers do bem da Campus Party, encontro anual de aficionados por informática. Vinte e nove equipes se inscreveram para participar, no dia 30, do Parlathon 2018, maratona tecnológica organizada pelo Senado e Câmara dos Deputados no evento, que este ano está sendo realizado no Estádio Nacional de Brasília Mané Garrincha. Em 36 horas, os participantes buscaram uma solução original, para facilitar o acompanhamento da “trilha legislativa”.
A Equipe vencedora desenvolveu um aplicativo para celular que permite visualização descomplicada da trajetória das proposições legislativas. Para Danilo Lemes, líder da do time vencedor, a maior dificuldade foi compreender o processo legislativo.“A gente perdeu bastante tempo tentando entender a tramitação de um projeto de lei. Uma Casa inicia, a outra revisa, tem veto, não tem veto. Além disso, a gente encontrou muitos problemas na hora de puxar os dados. Apesar de representarem a mesma coisa, os dados das duas Casas são de forma totalmente diferentes. Vincular os dois é muito difícil”, disse ele, segundo informe do Núcleo de Intranet do Senado. Além de Danilo, fizeram parte da equipe vencedora Daniel Sousa e Abner Lucas.
O diretor-executivo de Gestão do Senado, Márcio Tancredi, avaliou a participação do Senado na Campus Party como “mostra definitiva” de disposição da Casa “para inverter uma equação antiga”, ao referir-se às travas de comunicação com os cidadãos: “O que vale agora não é o que a gente quer mostrar ao público, mas entender o que o público quer ver da nossa parte”.
Conforme a diretora-adjunta de Inovação e Tecnologia da Informação da Câmara, Patrícia Almeida, houve uma mudança da estratégia para aproximar mais o Congresso do jovem cidadão. Nas duas Casas, explica, há uma busca por ideias que possam atualizar e criar serviços para essa nova geração.
Os dados abertos colocados à disposição para os participantes do hackathon estão integrados, o que permite ver a tramitação dos projetos do início até o fim em uma só base. Apenas os números das proposições continuam diferentes, uma no Senado e outra na Câmara. Mas, segundo Patrícia, já se discute como unificar a numeração, o que facilitará o acompanhamento da trilha legislativa nas duas Casas.
Esse objetivo foi antecipado há cerca de três meses pelo secretário-geral da Mesa do Senado, Luiz Fernando Bandeira. Em balanço de sua gestão apresentado no Plenárioem 13 de abril, ele falou sobre o andamento do processo de modernização do sistema legislativo e anunciou que um grupo de trabalho trabalha na integração entre os sistemas da Câmara e do Senado, de modo a facilitar a busca de informações já a partir da próxima legislatura, no ano que vem.
“Hoje é muito difícil pesquisar no site do Senado uma matéria que teve origem na Câmara, pois quando chega aqui, a matéria muda de número. A mesma coisa ocorre com as matérias que saem daqui para lá. Então, essa integração de sistemas visa, principalmente, manter a numeração das matérias para facilitar a pesquisa quando a tramitação delas estiver ocorrendo na outra Casa”, explicou o secretário, de acordo com informe da Agência Senado.
Um exemplo corriqueiro é o do que ocorreu ao projeto de autoria da senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM) que pedia a ampliação da pena em caso de estupro coletivo e criava o crime de divulgação de estupro. Enviado à Câmara como PLS 618/2015, e com apenas três artigos, voltou da Casa congênere na condição de substitutivo e com o número SCD 2/2018. Depois de ser mesclado a outros projetos continha nove artigos, subdivididos em vários parágrafos e itens, e tratava de um rol maior crimes de natureza sexual.
Evidentemente, a alteração de projetos, inclusive pela mescla a outros e a incorporação de emendas é uma prática usual na democracia parlamentar. O que está em marcha são mudanças para facilitar a visualização do caminho intrincado que percorrem as matérias.
A transparência deve ser ampliada do mesmo modo nos próximos quando o painel eletrônico for conectado à internet. A medida possibilitará a conferência do resultado das votações pelos internautas.
“As pessoas poderão acessar o site do Senado e visualizar o painel eletrônico como se o estivessem vendo [no plenário]. Vão aparecer todas as informações no site da mesma forma que está no painel”, explicou Bandeira.
Informações do painel eletrônico do Plenário do Senado estarão disponíveis ao cidadão pela internet (foto: Waldemir Barreto/Agência Senado)
Como se faz uma lei
De acordo com o consultor do Senado Roberto Ribeiro da Silva, as leis brasileiras são resultado de um conjunto de procedimentos previamente estabelecidos do qual se servem os parlamentares em sua função de legislar e fiscalizar. Toda lei começa a partir de um projeto. E essa iniciativa pode ser, em nível federal, dos deputados e senadores, do presidente da República, das comissões da Câmara e do Senado, do Supremo Tribunal Federal, dos tribunais superiores, do procurador-geral da República e de grupos organizados da sociedade. No caso das assembleias legislativas, os projetos podem ser sugeridos pelos deputados estaduais, pelos governadores e, em nível municipal, pelos vereadores e prefeitos.
O ordenamento jurídico brasileiro determina que a criação de um projeto de lei se divide em três etapas: iniciativa, constitutiva e complementar. Na fase iniciativa, como o próprio nome diz, ocorre a apresentação da proposta em conformidade com os parâmetros regimentais. Seguindo a técnica legislativa, esse texto deve conter ementa — ou explicação —, objetivo, justificativa com base em artigos e parágrafos jurídicos, além da assinatura da autoridade competente. Quando a iniciativa é de um senador, esse projeto é protocolado no Senado, no caso de um deputado, esse registro é feito na Câmara Federal.
O consultor explica que, após esse procedimento, passa-se à etapa constitutiva, quando o projeto é enviado ao presidente da Casa onde foi apresentado. É o presidente quem analisa a matéria e a despacha para as comissões temáticas.
— Por exemplo, um projeto que trata de meio ambiente, geralmente, segue para a Comissão de Meio Ambiente, assim como um que trata de segurança pública segue para a Comissão de Constituição e Justiça, e outro com temática escolar segue para a Comissão de Educação. E, dependendo da abordagem, esse texto poderá ser analisado por mais de uma comissão — esclarece Silva.
Reunião da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado. Análise de um projeto se inicia pelas comissões temáticas (foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado)
Após esse encaminhamento, e dependendo do regime de tramitação adotado — que pode ser ordinário, de urgência ou urgência urgentíssima —, chega-se à fase de instrução, por meio dos debates nas comissões e elaboração de parecer. De acordo com o consultor, é nessa etapa que a proposta pode receber sugestões de alterações, chamadas de emendas.
— Depois dessa instrução, o parlamentar designado para analisar o texto elabora um relatório com seu voto, que pode ser pela aprovação, pela apresentação e/ou acatamento das emendas, por um substitutivo ou mesmo pela rejeição ou arquivamento da matéria — explica o consultor.
Em muitos casos, se houver consenso, o texto já é aprovado em caráter definitivo nas próprias comissões. Caso isso ocorra, esse documento segue para a mesma avaliação na Casa revisora. Ou seja: quando um projeto é apresentado no Senado, é a Câmara dos Deputados quem o avaliza e vice-versa. Se houver posições contrárias, o Plenário precisa votar antes.
Diferentemente do Senado, na Câmara dos Deputados, seja qual for o assunto do projeto, todos precisam ser avaliados pela Comissão de Constituição e Justiça, responsável por dizer se a proposta está correta do ponto de vista jurídico e se não contraria a Constituição Federal. Depois disso, o projeto pode ser apreciado pelo Plenário. Silva esclarece ainda que essa tramitação é diferente nas duas casas porque cada uma tem seu próprio Regimento Interno.
Reunião da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. Colegiado avalia constitucionalidade de todas as propostas que tramitam na Casa (foto: Alex Ferreira/Câmara dos Deputados)
Fase final
Após análise e aprovação pelo Congresso Nacional, esse projeto de lei segue para a avaliação do presidente da República, que poderá sancioná-lo ou vetá-lo parcial ou integralmente. Essa análise é feita de acordo com a Constituição Federal, considerando o amplo interesse público. Caso o presidente opte por vetar o texto, ou parte dele, as razões que fundamentam a recusa são novamente encaminhadas para revisão do Congresso Nacional.
— Essa deliberação, pelo Poder Executivo, é a fase final de um projeto. Quando esse texto é sancionado, ocorre sua promulgação e publicação do Diário Oficial da União no prazo de 48 horas. É uma fórmula que atesta a validade dessa nova lei, cuja vigência determina o início da observância e de seus efeitos para todos os cidadãos — destaca o especialista.
Variações
Ele explica que há diferentes tipos de proposições, previstas no artigo 59 da Constituição Federal (veja quadro). Emenda à Constituição, Lei Complementar, Lei Ordinária, Medidas Provisórias são algumas, cuja definição depende das competências previstas no processo legislativo.
— Há matérias, por exemplo, que são exclusivas do Congresso Nacional e, portanto, devem tramitar por meio de Decretos Legislativos. Sobre outras iniciativas, a própria Constituição exige a edição de uma Lei Complementar, assim como as resoluções são competências privativas da Câmara ou do Senado, e assim por diante — ressalta.
Identificação dos projetos
A numeração de todos os projetos é organizada internamente em cada Casa legislativa. No Senado, esse ordenamento é zerado e renovado anualmente, enquanto, na Câmara, essa mudança acontece somente ao final dos períodos legislativos, a cada quatro anos. O consultor observa que, apesar de atuarem conjuntamente formando o Congresso Nacional, Senado e Câmara têm plena autonomia administrativa e, inclusive, regimental. E, não obstante os projetos mudarem de numeração na casa revisora, sempre contêm a identificação da Casa iniciadora.
O consultor do Senado e diretor-geral da Escola Nacional de Administração Fazendária, Fernando Meneguin ressalta o mesmo aspecto. Ele considera a transparência um dos pontos altos do processo legislativo na esfera federal. E elogia o grau alcançado pelos portais da Câmara e do Senado na disponibilização de documentos e indicação de todos os passos da tramitação das matérias.
Informatização crescente do processo legislativo favorece a transparência (foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado)
Outro ponto importante na elaboração de uma lei, o da avaliação de seus impactos, está igualmente resguardado, no entendimento de Meneguin, que assinala o avanço considerável do Congresso Nacional tanto em termos da avaliação “ex-ante” (anterior à apresentação) quanto ex-post (posteriormente)
— Relativamente à avaliação ex-ante, o Senado tem como estratégia desenvolver o instrumento a análise de impacto legislativo, cuja finalidade é incrementar a qualidade das normas. Isso acontece por meio de técnicas que tentam antever os efeitos potenciais da futura lei, possibilitando um desenho que alinhe corretamente os incentivos a serem postos pela legislação.
Meneguin classifica o processo legislativo federal como “muito bem estruturado”, tanto na Câmara quanto no Senado, principalmente por possibilitar o que ele chama de “participação plural”, ou seja, as manifestações de todo o espectro político.
— Há que se ressaltar também que os setores administrativos das comissões, que dão suporte aos parlamentares, funcionam de forma extremamente profissional, garantindo legalidade e legitimidade ao processo – acrescenta o presidente da Esaf.
Iniciativa popular
A Constituição Federal de 1988 prevê a apresentação de projetos de iniciativa popular à Câmara dos Deputados desde que disponham sobre temas que não sejam de iniciativa privativa do presidente da República e contenham a assinatura de, no mínimo, 1% do eleitorado nacional. Essas adesões devem ser originárias de, pelo menos, cinco estados brasileiros, com não menos de 0,3% dos eleitores de cada um deles. Além disso, o projeto de lei de iniciativa popular deverá tratar de um só assunto e não poderá ser rejeitado por vício de forma, cabendo à Câmara promover a correção de impropriedades técnicas (tanto legislativas quanto de redação).
Atendida exigência constitucional, o projeto deve ser protocolado junto à Secretaria-Geral da Mesa, obedecendo ao disposto no artigo 52 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Os interessados devem acessar o formulário padronizado para a coleta das assinaturas. Já os diferentes modelos de propostas podem ser acessados neste link .
Entrega das assinaturas de apoio ao projeto de iniciativa popular da Lei da Ficha Limpa (foto: Luiz Alves/Câmara dos Deputados)
Roberto Ribeiro da Silva lembra que, por ser de difícil implementação, esses projetos de iniciativa popular foram pouco aproveitados ao longo da história brasileira. Por este motivo, o Congresso estabeleceu as comissões de legislação participativa. No Senado, as propostas podem ser enviadas por meio do portal e-Cidadania. Quando recebem 20 mil apoiamentos, elas são analisadas pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) e, se aprovadas pelos senadores, passam a tramitar como projetos de leis. Atualmente, há 93 ideias com mais de 20 mil apoios; 33 sugestões com parecer da CDH, e 10 ideias já convertidas em projetos de lei ou propostas de Emenda à Constituição.
Para apresentar uma sugestão no Senado, clique aqui e, depois, na aba “enviar proposta”.
— Essa é a forma mais prática criada pelo Senado para aproximar os brasileiros do processo legislativo, e a ferramenta mais fácil para que o cidadão apresente suas ideias perante o Parlamento — pontua.
Com agência senado