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Especial
15/05/2018 13:33:00

Ditadura militar no Brasil: o golpe de ontem e seus defensores de hoje


Ditadura militar no Brasil: o golpe de ontem e seus defensores de hoje

Foto: Agência Brasil

Por Juliana Passos de Castro* 

O golpe de 1964, que instalou uma ditadura militar no Brasil por 21 anos, foi legitimado, à época, como uma ação necessária à manutenção da democracia. Um dos resultados do regime de exceção, então imposto ao país, foi o conjunto de violações aos direitos humanos praticadas pelo Estado. Embora seja evidente a contradição entre este fato e o que se espera de um governo que se afirma democrático, atualmente, ainda há vozes em defesa deste período repressivo.

Os atos provenientes dos poderes da república que tentaram conferir legitimidade ao golpe militar de 1964 foram muitos.

No livro Tanques e togas: o STF e a ditadura militar o autor, Felipe Recondo, relata que o presidente do Supremo Tribunal Federal, o ministro Ribeiro da Costa, estava presente quando o presidente da câmara dos deputados, Ranieri Mazzilli, tomou posse como presidente da república, momento em que chegou ao fim o governo de João Goulart, e foi consumado o golpe no país. O ministro pronunciou-se publicamente sobre este fato, afirmando que “o desafio feito à democracia foi respondido vigorosamente”. Após a eleição de Castelo Branco pelo Congresso Nacional, Ribeiro da Costa manifestou-se novamente, dessa vez em defesa do novo presidente, afirmando que “sem ele a democracia vai embora. É imprescindível que todos nós democratas emprestemos apoio ao presidente Castelo Branco”[1].

Também houve empenho em conferir legitimidade ao golpe, do ponto de vista legal. Para tal fim foram expedidos vários Atos Institucionais. O Ato Institucional (AI) 01, de 09 de abril de 1964, foi claro ao tentar justificar as restrições constitucionais previstas em seu texto, no poder constituinte e no interesse do povo e da nação. Dessa forma, ao mesmo tempo em que ampliou consideravelmente os poderes do presidente da república, instituiu eleições indiretas, suspendeu direitos fundamentais dos servidores públicos e previu a cassação de direitos políticos sem possibilidade de revisão por parte do judiciário, também afirmou que “a revolução se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação. A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte”. (…) Em nome da revolução vitoriosa, e no intuito de consolidar a sua vitória, de maneira a assegurar a realização dos seus objetivos e garantir ao País um governo capaz de atender aos anseios do povo brasileiro, o Comando Supremo da Revolução, representado pelos Comandantes-em-Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica resolve editar o seguinte Ato Institucional[2].

Os demais institucionais seguiram a mesma tendência do primeiro. O AI 05, que dentre outras alterações constitucionais, suspendeu a garantia de habeas corpusbuscou justificar-se na defesa de uma “ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana[3]”.

O Ato institucional 14, também lembrado por Felipe Recondo, no livro anteriormente citado, fez referência ao bem estar do povo quando instituiu a pena de morte e a prisão perpétua, dentre outras hipóteses, nos casos de “guerra psicológica adversa, ou revolucionária ou subversiva”[4].

 

Decorridos 54 anos do golpe, há muitas provas de que o período relativo à ditadura militar não teve qualquer compromisso com valores democráticos, e de respeito aos direitos fundamentais.

Ainda que tardiamente, em diversas ocasiões, o Brasil reconheceu, oficialmente, sua responsabilidade pelas violações aos direitos humanos praticadas em nome do Estado no período ditatorial como, mortes, desparecimentos, torturas e violência sexual. A Lei n. 9140 de 1995[5], o livro Direito à verdade e à memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos[6], os relatórios da Comissão Nacional da Verdade, e das diversas Comissões Estaduais da Verdade instituídas no país, trazem relatos, provas e detalhes sobre os abusos aos direitos humanos, praticados nos anos de chumbo. Importante também é o papel da Comissão de Anistia, ao analisar os requerimentos de anistia e pedidos de indenização dos perseguidos políticos. Em várias sessões de julgamento, a Comissão pediu desculpas às vítimas do regime, reconhecendo, formalmente, a responsabilidade estatal pelos danos causados no contexto da ditadura.

Recentemente, o pesquisador da Fundação Getúlio Vargas, Matias Spektor, deu visibilidade a um documento da Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos, CIA, que revela o envolvimento de três ex-presidentes da ditadura militar brasileira em assassinatos de opositores políticos. Trata-se de um memorando, com data de 11 de abril de 1974, elaborado por William Egan Colbim, então presidente da CIA e dirigido ao Secretário de Estado dos Estados Unidos, Henry Kinssinger informando-lhe sobre um encontro com o presidente do Brasil na época, Ernesto Geisel. De acordo com o documento, em reunião ocorrida em 30 de março de 1974, Geisel foi informado sobre 104 execuções de dissidentes políticos realizadas no governo Garrastazu Médici e indagado sobre sua concordância com a manutenção de tais métodos. Após um dia reflexão, Geisel deu o aval para a continuidade das mortes, desde que fossem aplicadas a “subversivos” perigosos e aprovadas pelo chefe do Serviço Nacional de Inteligência, João Baptista Figueiredo, também presente na reunião e que foi seu futuro sucessor na presidência do país.

Apesar da existência de todos os esses documentos, que confirmam a utilização da violência como política de Estado, praticada sistematicamente durante o período de exceção, ainda há defensores do regime de repressão vivenciado pelo país. Além das manifestações já realizadas em apoio a uma intervenção militar no Brasil[7], as redes sociais estão repletas de pronunciamentos em defesa da ditadura e seus idealizadores. Na própria página do facebook de Matias Spektor, há várias declarações exaltando o período ditatorial em resposta à notícia por ele postada sobre o memorando da CIA.

É difícil apontar uma única razão para que existam, ainda, tantas pessoas favoráveis a um período tão cruel da história. O enfrentamento dos abusos aos direitos humanos praticados na ditadura foi impulsionado primeiramente pelos familiares da vítimas e um dos principais documentos sobre relatos da violência sofrida pelos perseguidos políticos, o Brasil Nunca Mais, não originou-se a partir da inciativa do Estado e sim de arquidiocese de São Paulo. A justiça de transição brasileira foi tardia e incompleta. Tal fato pode ter causado prejuízos à consolidação de uma memória coletiva de repúdio às atrocidades do passado.

Entretanto, é preciso fazer alguns esclarecimentos ao menos sobre um dos principais entusiastas do regime militar no Brasil, o deputado federal Jair Bolsonaro, pré-candidato à presidência da república nas eleições de 2018.

Sua reação após a divulgação do memorando da CIA é incompreensível quando se pensa em um possível presidente do país. O deputado tentou desqualificar o documento e questionar a veracidade das informações nele contidas mesmo sabendo que trata-se de um documento secreto, liberado pelo Departamento de Estado do governo dos Estados Unidos e divulgado por um pesquisador comprometido com seu ofício e que informou, inclusive, onde encontra-se fisicamente o documento. Ao comentar o assunto, Bolsonaro afirmou, dentre outras coisas, que “foi um memorando de um agente, que a imprensa não divulgou. É um historiador que diz que viu, mas não mostrou”[8].

A simpatia de Bolsonaro em relação aos agentes estatais que cometeram crimes contra a humanidade, não é um dado novo. Em 2016, na sessão que decidiu o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, o deputado prestou homenagem, em rede nacional, a um dos agentes mais cruéis da ditadura brasileria. Na ocasião o deputado afirmou, dentre outras coisas, que votava favoravelmente ao impeachment “em memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff”.

Ustra foi comandante do DOI-CODI do II Exército, em São Paulo, um dos órgãos mais violentos do aparato repressivo estatal no período da ditadura. A Comissão Nacional da Verdade reconheceu seu envolvimento em diversas violações de direitos humanos. Na esfera judicial ele também foi reconhecido como torturador no julgamento da ação cível envolvendo a família Teles.

Embora Bolsonaro tenha como exemplo um dos principais torturadores do Brasil e não se indigne diante da notícia da execução sumária de 104 pessoas, a mando do Estado, seus discursos são permeados de referências ao povo brasileiro e a valores democráticos.

 

A postura das instituições e dos poderes públicos também trazem preocupações sobre os rumos que vem tomando o país em relação à forma de encarar o período ditatorial de 1964.

 

Passado mais de meio século do golpe, os agentes perpetradores das violações aos direitos humanos continuam impunes. Apesar de todas as provas existentes, sobre o envolvimento de agentes estatais em crimes de lesa humanidade, ainda prevalece à interpretação, no âmbito do judiciário, de que estes crimes foram anistiados pela Lei n. 6683 de 1979[9]. O Supremo Tribunal Federal foi provocado a se pronunciar sobre o assunto, em uma ação proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil[10]. Na ocasião, foi formulado pedido no sentido de que a referida lei fosse interpretada de acordo com a Constituição de 1988, não se considerando, assim, anistiados, os crimes comuns praticados na ditadura por agentes estatais, como os assassinatos, desaparecimentos forçados e tortura. O supremo Tribunal Federal, porém, decidiu pela plena aplicabilidade da lei de anistia e manteve seu posicionamento mesmo após a condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Essa condenação referiu-se ao caso Gomes Lund e outros[11]. Na oportunidade, a Corte responsabilizou o Brasil pelo desaparecimento e morte de militantes políticos que integraram a Guerrilha do Araguaia, pronunciando-se pela invalidade da anistia concedida a crimes contra a humanidade.

A divulgação do memorando da CIA confirma a prática de execuções sumárias, com o envolvimento da alta cúpula do governo e com a utilização da estrutura repressiva estatal. Confirma-se assim, o que já se sabia: que as vítimas encontravam-se em condições totalmente desproporcionais em relação ao Estado.

 

Não tem sentido, portanto, falar em anistia bilateral e o Supremo deveria rever, de imediato, seu posicionamento sobre a impossibilidade de persecução penal relativamente aos crimes comuns praticados na ditadura em nome do Estado.

 

Um outro ponto que merece ser repensado diz respeito à postura das Forças Armadas, sobretudo nos últimos acontecimentos vivenciados pelo país. Uma afirmação bastante polêmica do comandante do exército, Villas Bôas, referiu-se a sua preocupação com a possiblidade de instalação de uma nova Comissão da Verdade relativamente às ações da intervenção federal do Rio de Janeiro. Esse pronunciamento leva ao entendimento de que as Forças Armadas querem agir sem ter que prestar conta de seus atos. Recentemente, nas vésperas do julgamento do habeas corpus do ex presidente Luís Inácio Lula da Silva, foi amplamente divulgado que o comandante afirmou em seu Twitter que o Exército brasileiro “compartilha o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais”. A declaração dividiu opiniões e foi interpretada como uma ameaça de intervenção militar na vida política do país. Novamente aqui são feitas referências à Constituição, à democracia e aos cidadãos, mas o que realmente merece atenção é a dúvida que surge sobre a efetiva subordinação da instituição ao poder civil. Um pedido de desculpas das Forças Armadas com o reconhecimento de sua responsabilidade institucional pelos crimes cometidos na ditadura seria uma postura bem mais compatível com democracia do que ameaças de uma nova interferência militar no país.

A Constituição de 1988 fará aniversário de 30 anos, logo mais em outubro. Também é ano de eleições. Será comum ouvir referências a termos como democracia, à própria constituição de 1988 e aos interesses do povo e da nação. É importante, porém, lembrar que foram esses os termos usados justamente por quem instaurou no país uma ditadura militar que agiu criminosamente, em total contrariedade a todos os valores que afirmava defender.

Juliana Passos de Castro é Doutoranda em direito pela Universidade Federal de Pernambuco e Mestra em direito pela Universidade Federal de Pernambuco.



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