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Mundo
18/03/2018 13:02:00

'Ficaremos até o fim': A batalha de um médico para salvar vidas na Síria


'Ficaremos até o fim': A batalha de um médico para salvar vidas na Síria

Com o acirramento do cerco do governo sírio à região de Ghouta Oriental, além dos ataques aéreos contra este enclave rebelde, equipes médicas estão presas em meio a uma batalha desesperada para salvar os feridos. Com medo de reações violentas, pediram que a BBC não revele suas verdadeiras identidades nem localizações.

Algumas das imagens podem ser perturbadoras.

A família do doutor Hamid vive agora em um único cômodo: uma apertada e pouco iluminada garagem que fica junto ao prédio onde ele um dia já morou. O resto da casa, num subúrbio de Ghouta Oriental, próximo à capital, Damasco, foi destruída há um mês, dias após um agravamento brutal da força usada pelo governo sírio contra o reduto rebelde.

Doutor Hamid, de 50 anos, sai deste abrigo improvisado três vezes por semana e vai até um hospital próximo, onde ele é trabalha como médico no pronto socorro. Quando e despede da mulher e dos cinco filhos, tenta não pensar que pode ser pela última vez.

Ele vai de bicicleta até o hospital e passa por ruas desertas, cheias de destroços, ciente do perigo que é estar fora de casa mesmo que só por alguns minutos. Se o bombardeio é pesado e há muitos feridos, ele pode trabalhar por mais de 24 horas, sem folga. Quando está tratando crianças feridas, ele pensa nas suas. Nas curtas pausas entre pacientes, reza por suas vidas. Não há descanso.

A guerra civil na Síria acaba de entrar no oitavo ano. Mais de 400 mil pessoas foram mortas ou desapareceram. Três filhos do próprio doutor Hamid e muitas outras crianças levadas ao seu hospital nunca conheceram a paz.

Elas chegam com estilhaços de bala, sem membros do corpo, com queimaduras severas. Às vezes, sem ferimentos visíveis, mas totalmente sem vida, com um odor de gás em seus corpos. "A maior parte das crianças que morrem são vítimas de bombas na cabeça ou ferimentos em seus abdomens ou intestinos. Já vi casos de feridas diretamente no coração", diz Hamid.

"Essas crianças precisam de cirurgiões especialistas e sete ou 14 dias na UTI. Muitas poderiam ser salvas. Mas, aqui em Ghouta, não podemos fazer nada. Tentamos conter o sangramento e garantir seu bem-estar e, então, deixamos que morram."

Prédios destruídos em Ghouta OrientalDireito de imagemEPA
Image captionEquipes médicas dizem que seu trabalho é uma 'batalha crua e incansável' para salvas as pessoas da morte

Apoiados por ataques aéreos pesados da Rússia, forças pró-governo sírio estão avançando sobre o perímetro de Ghouta oriental, uma das últimas áreas controladas por rebeldes na Síria.

Ao menos 1,1 mil civis foram mortos desde que o regime intensificou seus ataques aéreos no mês passado, dividindo o enclave em três bolsões. Os rebeldes bombardearam civis em áreas vizinhas controladas pelo governo e, de acordo com um oficial da ONU, usaram rifles para matar aqueles que tentavam fugir.

Por meio de entrevistas por telefone, quatro médicos e equipes médicas descreveram seu trabalho em Ghouta Oriental como uma batalha difícil e sem fim para salvar as pessoas da morte, com pouco espaço para buscar preservar membros de pacientes ou sua visão ou protegê-los de infecções fatais. A medida para um tratamento bem-sucedido transformou-se em um cálculo binário, dizem: resulta em vida ou morte.

Essa semana, um menino de cinco anos chegou ao hospital do doutor Hamid com múltiplos ferimentos e fraturas nas duas pernas e braços. Hamid suturou seus ferimentos, amputou um de seus braços e uma de suas pernas até a coxa superior. "Esse é o futuro dele", diz Hamid. Mas o menino está vivo, e isso é um êxito.

No mesmo dia, uma bebê de um ano e meio foi levada ao hospital com uma laceração enorme na coxa depois da explosão de uma bomba, rompendo completamente sua artéria. Hamid tentou desesperadamente conectar sua perna e restaurar um pouco do fluxo sanguíneo, mas não conseguiu suturar a artéria direita.

"Não sabemos se, no futuro, ela vai andar ou se a perna dela será a sombra do que é uma perna", afirma. "Mas ela está viva." Um sucesso. Na mesma semana, cinco crianças que tinham sido levadas ao doutor Hamid morreram. "Quando lidamos com crianças, esperamos que Deus esteja olhando por elas", ele diz, suspirando profundamente. "Desculpe-me... palavras não dão conta de expressar isso."

Criança ferida é atendida depois de um bombardeio em Doumba, perto de Ghouta OrientalDireito de imagemEPA
Image captionAo menos 1,1 mil civis foram mortos desde que o regime intensificou seus ataques aéreos no mês passado

Cerca de 50 pacientes que precisavam de atendimento médico urgente foram evacuados de Ghouta Oriental nesta semana, e civis de algumas áreas estão começando a escapar, mas a Organização das Nações Unidas (ONU) estima que cerca de 390 mil pessoas permaneçam presas, escondidas em abrigos subterrâneos e com acesso limitado a comida, água e tratamento médico.

Ataques diretos a instalações médicas aumentaram nas últimas semanas, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), principalmente em Ghouta Oriental. Um terço do hospital de Hamid foi danificado. As partes que funcionam estão repletas de pessoas feridas, dificultando a passagem. Quando os bombardeios são graves, o chão fica repleto de cadáveres que não podem ser transportados. Na semana passada, os funcionários do hospital ficaram 48 horas sem conseguir mover os corpos.

Em Ghouta Oriental, equipes médicas estão fisicamente e emocionalmente exaustas, segundo Lorena Bilbao, coordenadora do Médico Sem Fronteiras na Síria. "Eles têm trabalhado sem descanso, com poucas horas de sono por dia, sem se alimentar regularmente e constantemente frustrados e com medo de bombardeios."

O acirramento do conflito em fevereiro trouxe consigo novas armas e um "novo tipo de horror", afirma Atef, de 36 anos, um radiologista em um hospital cirúrgico. Agora, eles estão vendo pacientes com múltiplas feridas graves. "Não estamos acostumados a esse nível de lesões", diz ele. "Não podemos ajudá-los. Quando você olha em volta, há desespero no rosto dos membros da equipe."

Muitos dos que sobraram em Ghouta Oriental agora estão escondidos nos subterrâneos. Atef vive no porão de um prédio público com sua mulher, crianças e outras cem pessoas. Mohammed, um estudante de medicina de 23 anos que foi forçado a abandonar seus estudos e virar médico de guerra, vive com sua família no porão de um vizinho, onde 30 pessoas estão apertadas em três quarto pequenos e não há eletricidade ou água.

Para passar o tempo, os membros da família conversam no escuro ou esgotam a bateria dos seus celulares com jogos. Cinco primos de Mohammed morreram no mês passado, ele conta. Assim como seu tio, o marido de sua irmã, a esposa de seu irmão e sua família inteira.

"Os pacientes também são nossa família. Seguiremos tratando todos até o medicamento acabar. Até ficarmos sem nada. Até os minutos finais."

Medicamentos vitais e suprimentos médicos estão acabando em Ghouta Oriental. Enviados da Cruz Vermelha foram autorizados a entrar na região na quinta-feira, levando pacotes de comida, mas não medicamentos. Segundo a OMS, o regime sírio confiscou 70% dos suprimentos enviados anteriormente, inclusive kits de primeiros socorros, de cirurgia e insulina.

O Médicos Sem Fronteiras diz que agora só há um cirurgião vascular na região e nenhuma chance de transferir pacientes, deixando os clínicos gerais sem opção a não ser amputar membros que poderiam ser salvos. O doutor Hamid estima que o hospital deva ter anestésico só para mais algumas semanas, o que pode significar uma terrível realidade em que amputações são feitas sem ter uma forma de apagar a dor.

"Estamos trabalhando com fios de sutura que já foram usados antes, luvas descartáveis usadas, drenos que já foram usados por outros pacientes. A maior parte dos ferimentos infeccionam e precisam de ataduras, mas estamos recorrendo a ataduras usadas."

Não há equipamento laboratorial para testar a presença de químicos tóxicos– médicos e ativistas da oposição dizem que armas químicas estão sendo usadas por forças a favor do regime. O governo nega, mas sua alegação é refutada pela ONU, que diz que gás de cloro foi usado ao menos três vezes em 2014 e 2015. Uma investigação recente diz que a arma química foi usada em janeiro em Ghouta Oriental.

Os médicos descrevem pacientes que chegam com olhos e vias respiratórias irritadas e com um forte odor. "Para nós, é óbvio depois de um ataque", diz Hamid. "Todos que vêm em ambulâncias têm o mesmo cheiro."

A exposição ao gás não mata geralmente, mas pode ser letal se os pulmões da vítima são muito pequenos. Os médicos lembram-se de dois casos assim. "Vimos uma bebê de três meses e um menino de dois anos", diz Mohammed. "A menina ficou usando o respirador por uma semana e sobreviveu. Mas o menino morreu. Ele estava azul, e seu corpo cheirava a gás de cloro."

Menina síia aguarda tratamentoDireito de imagemAFP
Image caption'Crianças são as mais difíceis de tratar porque lembram os nossos próprio filhos', diz um médico

A brutalidade que vai piorando em Ghouta Oriental reflete o estado de uma guerra maior. O governo de Bashal al-Assad diz que está "limpando" a nação de terroristas, mas ataca o país indiscriminadamente, matando dezenas de milhares de civis.

"Eles dizem que estão matando terroristas, mas não somos terroristas. As pessoas que eu vejo morrer são mulheres e crianças", diz o doutor Hamid. Ele está monitorando o nível dos estoques de antibióticos, anestésicos e insulina do hospital, que estão no fim. Se nenhum suprimento chegar, vão acabar.

O lugar onde cresceu foi abandonado e sofre uma "morte lenta", conta Hamid. Era o lugar onde pessoas iam de Damasco, com suas mulheres, maridos e crianças, para piqueniques ou para comprar produtos nos mercados. "Vinham de todos os lugares para respirar ar puro, ver os rios e as árvores", afirma. "Para mim, é o paraíso na terra."

Agora, ele reza à noite em seu abrigo apertado para que um dia seus filhos possam ver o lugar de novo "verde como era quando ele era criança". "Pode ser que seja tarde demais para mim. Mas, se Deus quiser, nossos filhos vão ver isso."

Mulher síria carrega bebê caminhando para fora de Ghouta orientalDireito de imagemAFP
Image captionA maioria das pessoas que permanecem em Ghouta Oriental vivem nos subterrâneos, em uma situação cada vez mais crítica

 



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