BBC Brasil - "A
aprovação do (projeto da Lei da) Ficha Limpa na Câmara foi uma grande vitória
da população brasileira e da ética", comemorou em maio de 2010 o então
deputado federal José Eduardo Cardozo no Twitter.
O petista, depois ministro da Justiça do governo Dilma Rousseff, foi
relator do projeto de lei que chegou ao Congresso por iniciativa popular, com
apoio de 1,6 milhão de assinaturas. Entre várias mudanças nas regras para
inelegibilidade, a proposta estabelecia que condenados em segunda instância por
crimes graves não poderiam mais disputar eleições.
Depois da aprovação pelos parlamentares, o texto foi sancionado sem vetos pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em junho daquele ano - é essa lei que hoje pode barrá-lo da disputa presidencial de 2018, caso sua condenação pelo juiz Sergio Moro venha a ser confirmada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) no julgamento marcado para 24 de janeiro.
O ex-presidente acusa Moro de não ser isento para
julgá-lo e contesta as acusações de que teria recebido um apartamento tríplex
no Guarujá (SP) em troca da promoção de interesses da empreiteira OAS junto à
Petrobras.
Hoje ameaçado pela norma, Lula deu total apoio à
Lei da Ficha Limpa em 2010. Antes mesmo da chegada do projeto de iniciativa
popular, o então presidente havia encaminhado ao Congresso outro projeto de lei
com teor semelhante em fevereiro de 2009, dentro de um pacote de reforma
política.
Hoje, porém, seus apoiadores questionam a
legalidade do processo contra o petista e dizem que a eleição de 2018 não será
legítima se ele for barrado pela regra. No momento, o ex-presidente lidera as
pesquisas de intenções de voto.
"Eleição sem Lula é fraude", tem repetido
a presidente do PT, Gleisi Hoffmann.
"Lei é lei e deve ser cumprida por todos. A
Lei da Ficha Limpa é uma conquista da cidadania e da democracia no
Brasil", rebate o líder do PSDB no Senado, Paulo Bauer, um dos que votou
pela aprovação da proposta em 2010, quando era deputado.
'Hoje, não apoiaria a lei'
Não há um balanço de quantos candidatos já foram
barrados pela lei até agora. Um levantamento parcial do Ministério Público
Eleitoral indicou que na eleição de 2014, até agosto, 153 haviam sido impedidos
de concorrer por essas regras.
Apesar de ter mobilizado grande apoio da opinião
pública e da classe política (a votação no Senado foi unânime), a proposta da
Ficha Limpa também gerou, na época, algumas reações de juristas e políticos que
viam o risco de a norma barrar de forma injusta potenciais candidatos, que
poderiam vir a ser absolvidos nas instâncias superiores, após condenações em
segunda instância.
Questionado pela BBC Brasil sobre ter se arrependido de ter
apoiado a norma, Lula não quis se manifestar. Já o governador do Maranhão,
Flávio Dino (PC do B), um dos grandes entusiastas da Lei da Ficha Limpa em
2010, quando era deputado, disse à BBC Brasil que naquele momento "a lei
era muito boa", mas que "no ambiente de hoje não apoiaria".
"Nesses sete anos, paradoxalmente, diminuiu a independência
judicial", argumentou.
Ex-juiz federal, Dino colaborou intensamente na redação da lei, como
subrelator de Cardozo. Ele conta que foi durante um dos vários almoços para
discutir a matéria, no restaurante do 10º andar da Câmara, que os dois
decidiram incluir na proposta de iniciativa popular a possibilidade de o
condenado em segunda instância suspender os efeitos de inelegibilidade por meio
de uma liminar de cortes superiores, como o Supremo Tribunal de Justiça ou o
Supremo Tribunal Federal.
Se o TRF-4 mantiver a condenação de Lula, a esperança para sua candidatura
residirá nesse recurso. Segundo o governador, o objetivo era criar "uma
válvula de escape" para o candidato ter como reverter eventual decisão
"ilegítima" em segunda instância. A lei prevê que a liminar pode ser
concedida "sempre que existir plausibilidade da pretensão recursal".
"O requisito é que o pedido seja minimamente plausível, que é o caso
(do Lula). Você tem um debate razoável (sobre esse processo). Não é uma
condenação indiscutível. Pelo contrário, é muito falha na minha visão",
afirmou Dino.
Segundo ele, um dos sinais de que o processo de Lula não estaria ocorrendo
dentro da "normalidade" é a rapidez "atípica" com que o
julgamento em segunda instância foi marcado. Segundo levantamento do jornal
Folha de S.Paulo, a tramitação da ação contra a Lula está sendo a mais rápida
entre os casos da Lava Jato no TRF-4.
Mas em uma resposta à defesa do ex-presidente, o presidente da corte, Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, negou que tenha havido celeridade. Segundo ele, 1.326 apelações foram julgadas pelo tribunal em um tempo inferior apenas neste ano.
'Aplicação a qualquer pessoa'
Márlon Reis, jurista que ficou conhecido por seu
papel de liderança na articulação da proposta da Ficha Limpa, defende a
validade da lei nos dias de hoje. Ressaltando não conhecer no detalhe o caso de
Lula, ele argumenta que a possibilidade de recurso às instâncias superiores
para suspender eventual inelegibilidade garante o bom funcionamento da norma.
"Eu defendo a aplicação da Ficha Limpa
indistintamente a qualquer pessoa. Uma norma não pode ser usada como
instrumento de perseguição política, para tentar tirar alguém da disputa de
forma arbitrária e artificial. Entretanto, a relevância do nome, o histórico
pessoal, o poder econômico ou qualquer outro distintivo não pode valer para
afastar a aplicação da lei, que deve se dar de maneira igual para todos",
defendeu Reis, atualmente filiado à Rede e pré-candidato ao governo do
Tocantins.
Já Marcelo Peregrino, ex-juiz do Tribunal Regional
Eleitoral de Santa Catarina e especialista na lei da Ficha Limpa, a qual
analisou em seu mestrado, pensa diferente. Um dos principais críticos da norma,
o advogado afirma que ela "não tem paralelo no mundo ocidental".
Além de impedir candidatos condenados em segunda
instância, a lei prevê uma série de outras situações de inelegibilidade, como
por exemplo no caso de servidor público demitido após processo administrativo
ou de pessoas proibidas de exercer sua profissão após decisão de "órgão
profissional competente".
"É uma lei muito ruim, que substitui a
soberania popular, o voto, e não é eficaz para reduzir a corrupção",
sustenta.
Na sua visão, a possibilidade de impedir uma
candidatura apenas com decisão em segunda instância, ou seja, sem a conclusão
do processo, é inconstitucional e contraria entendimento da Corte
Interamericana de Direitos Humanos, da qual o Brasil faz parte.
Segundo Peregrino, Lula poderá recorrer também a
esse tribunal, se ficar impedido de concorrer, mas as decisões lá costumam ser
muito lentas.
A regra e a disputa pela Presidência
Para o jurista Luiz Flávio Gomes, há provas que
permitem condenar Lula em segunda instância e os recursos que podem viabilizar
sua candidatura mesmo como "ficha-suja" são uma "frouxidão"
na lei. Na sua visão, a "injustiça" não está na condenação do petista
e no rápido andamento do seu processo, mas em isso não ser aplicado também para
políticos de outros partidos.
"O fato de a Justiça só estar condenando a
corrupção do Lula, e não a do (senador) Aécio (Neves), a do (presidente Michel)
Temer, a do (senador José) Serra, é terrível. A sociedade tem a sensação de
injustiça. Isso explica Lula ter subido nas pesquisas depois da condenação do
Moro", acredita.
O diretor para América Latina da ONG Open Society
Foundations, Pedro Abramovay, fazia parte da equipe do então ministro da
Justiça, Tarso Genro, quando o governo Lula enviou sua proposta de "ficha
limpa" ao Congresso em 2009.
Ele considera que, de maneira geral, o saldo da lei
é "muito positivo", principalmente para barrar candidatos envolvidos
em esquemas de corrupção das disputas para o Poder Legislativo. Mas diz, porém,
que talvez fosse melhor ter previsto outras regras para a disputa presidencial,
como a exigência de que apenas uma decisão do Supremo Tribunal Federal fosse
capaz de gerar inelegibilidade.
"No caso da disputa para presidente da
República, as consequências políticas (de barrar um candidato) são muito
sérias. Nunca se imaginou o tipo de politização que o Judiciário teria no
âmbito nacional quando a lei foi feita. Isso talvez tenha sido um erro",
afirmou.
Para Abramovay, impedir o líder das pesquisas de
concorrer pode gerar uma desconfiança na sociedade sobre a legitimidade da
próxima eleição, prolongando a crise política no próximo governo.
Márlon Reis, por sua vez, considera que o fato de Lula
liderar as pesquisas não deve ter qualquer influência em eventuais decisões da
Justiça. Ele também discorda da ideia de que talvez fosse melhor ter regras
diferentes para candidatos à Presidência.
Na sua visão, a aplicação de lei em uma disputa presidencial pode servir
"como um momento educativo".
"Justamente pela importância do cargo (de presidente), sobre ele deve
pairar cautelas ainda mais graves", defendeu, ressaltando que não se
referia especificamente ao caso do Lula.
Outro deputado que votou pela aprovação de lei em 2010, Efraim Filho, hoje
líder do DEM na Câmara, acusa os aliados de Lula que agora criticam a eventual
aplicação da ficha limpa de "incoerência". Ele ressalta que o PT
poderá continuar disputando a eleição com outros nomes, caso a sentença de Moro
se confirme.
"Aquilo que a Justiça decidir tem que prevalecer. Ninguém pode achar que liderar pesquisa é cheque em branco para poder escapar da lei."